domingo, 22 de abril de 2007

análise do poema da mensagem "O Infante"

Deus quer, o homem sonha, a obra nasce
Deus quis que a terra fosse toda uma,
Que o mar unisse, já não separasse.
Sagrou-te, e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou criou-te português.
Do mar e nós em ti nos deu sinal.
Cumpriu-se o mar, e o Império se desfez.
Senhor, falta cumprir-se Portugal!
Trata-se de um poema da segunda parte – Mar Português – da Mensagem- colectânea de poemas de Fernando Pessoa, escrita entre 1913 e 1934, data da sua publicação. Esta obra contém poesia de índole épico-lírica participando assim das características deste dois géneros. Relativamente à sua matriz épica devemos destacar o tom de exaltação heróica que percorre esta obra; a evocação dos perigos e dos desastres bem como a matéria histórica ali apresentada. No atinente à sua dimensão lírica, podemos destacar a forma fragmentária da obra, o tom menor, a interiorização da matéria épica, através da qual sujeito poético se exprime.
Nesta segunda parte da obra que nos propomos analisar abordam-se o esforço heróico na luta contra o Mar e a ânsia do Desconhecido. Aqui merecem especial atenção os navegadores que percorreram o mar em busca da imortalidade, cumprindo um dever individual e pátrio (realização terrestre de uma missão transcendente)
Em termos formais, constatamos que o poema é constituído por três estrofes, de quatro versos (quadras). Quanto ao metro e ao ritmo os versos são regulares. Os versos são decassilábicos heróicos. Predomina o ritmo ternário, aparecendo também o binário. Este ritmo largamente repousado, convém a um discurso carregado de simbolismo. A rima é sempre cruzada, segundo o esquema rimático abab, cdcd, efef, permitindo que certas palavras chave do poema fiquem em posição de destaque, no fim dos versos, como nasce, uma, mundo, português, sinal, Portugal.
O poema poderá dividir-se em três partes, tendo em conta o desenvolvimento do assunto: a primeira correspondendo apenas ao primeiro verso; a segunda parte desde ali até ao final da segunda estrofe e a terceira constituída pela última estrofe. Na primeira está contido uma afirmação tripartida de tipo axiomático ou aforístico “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”. Os três termos seguem-se segundo a ordem lógica causa-efeito, associando a cada agente a sua acção. Mas sem a vontade do primeiro nenhum dos outros se concretizaria. Se Deus não quisesse, o homem e não sonharia e a obra não nasceria. O sentido aforístico da afirmação tem valor universal.: o substantivo homem refere-se ao ser humano em geral e obra designa qualquer acção humana. Note-se o uso do presente perfeitamente em consonância com o discurso axiomático.
A segunda parte poderá por sua vez subdividir-se em três momentos. A primeira subunidade diz respeito à apresentação da vontade de Deus e vai até “sagrou-te”. Deus quer a terra unida pelo mar. Note-se o projecto divino concretizado na rede semântica que aponta para essa união: uma, inteira, redonda, unisse, não separasse. Note-se o valor simbólico do verbo “sagrou-te”, sugerindo o Infante de Sagres e a escolha do Infante para uma missão divina. Além disso advém-lhe ainda grande força pelas suas conotações religiosas. O mar por sua vez é também simbólico do mistério e do desconhecido, daí o uso de expressões como “desvendando a espuma” (desfazendo o mistério). O segundo momento referir-se-á ao homem e vai até ao fim da primeira quadra. Aqui se desenvolve a ideia de que o homem sonha e põe em prática a vontade de Deus. No poema esse homem identifica-se com o Infante. Ele é o herói navegante em busca do caminho da imortalidade, cumprindo um dever individual e pátrio: a realização terrestre de uma missão transcendente. Por outro lado é também o herói em busca de um caminho de universalidade. Assim se justifica o uso do artigo definido em O Infante e o homem, com valor universalizante. O Infante é o escolhido por Deus para concretizar o seu projecto. Isto confere-lhe um carácter divino, iniciático. Ele é aquele que sonha, que tem a visão e finalmente foi “desvendando a espuma”, ou seja realizou a obra. Pelo facto de ser português, a sua escolha para desempenhar uma missão transcendente, a sua divinização, a sua sagração é também a de todos os portugueses. Nesta parte aparece ainda a passagem do mistério para a luz em palavras e expressões como “orla branca” “clareou” (sair das sombras, revelar-se) já adivinhada na “espuma”(branca) da segunda parte e que se prolongará pelo “surgir”(sair das sombras, revelar-se) e pelo azul profundo” (do mar imenso, do fundo do mistério). A terceira vai até ao final desta segunda parte e refere-se à obra e corresponde à revelação. Há no poema vários indícios de revelação “ de repente”, “surgir”, “o azul profundo” e na terceira estrofe “sinal”. A revelação é repentina, espectacular, miraculosa. Tal é sugerido pela expressão “E viu-se a terra inteira, de repente,/ surgir , redonda, do azul profundo”. Esta visão da terra sugere a ideia de que a obra dos portugueses é o realizar de um plano divino. O redondo, a esfera, é o símbolo da perfeição cósmica, da unidade, da obra completa e perfeita que Deus quis. Ao longo desta segunda parte o tempo verbal predominante é o pretérito perfeito que permite narrar os acontecimentos passados.
Na terceira parte transpõe-se para o povo a glória do Infante. A conclusão é nítida – o povo português foi o eleito por Deus para esta façanha. Nesta estrofe temos um novo esquema hegeliano: o sonho cumpriu-se (tese), desfez-se (antítese) e deu lugar a um novo sonho (síntese). Este esquema dialéctico cíclico impõe o nascimento de um novo sonho, mas tal só se pode verificar se “ o Senhor” corresponder ao apelo que lhe é dirigido na frase exclamativa e em forma de vocativo “Senhor, falta cumprir-se Portugal!”. Teríamos assim uma nova vontade divina, um novo sonho e uma nova acção. Esta interpelação confere ao poema um pendor dramático, atendendo também em parte à tensão emocional da segunda estrofe com o surgimento mágico quase da terra redonda. Há aqui portanto um diálogo implícito entre o sujeito poético e Deus, o que acentua o carácter messiânico e misterioso do poema. Regressa-se nesta estrofe novamente ao presente o que se adequa à sucessão presente-passado-presente da dinâmica hegeliana. Após a primeira aventura gloriosa, sobreveio o desânimo. Por isso, é necessário o apelo em que o verbo falta acentua a urgência. Este último verso associado a todos os outros elementos simbólicos dá ao poema características simbolistas. O último verso sugere mais do que aquilo que afirma. Além disso os versos são curtos, estando também assim dentro da técnica simbolista. A afirmação deu sinal é a chave para o decifrar do mistério que já se vinha revelando desde há algum tempo.

6 comentários:

Anónimo disse...

Foi muito util, Obrigado

Unknown disse...

Foi muito útil,obrigado

Unknown disse...

qual seria o eu lirico da obra?

CURSO PALAVRA disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
CURSO PALAVRA disse...

Há uma polfonia referente ao eu lírico de "Mensagem", ou seja, Pessoa , além de usar o foco em 1° pessoa em alguns poemas, em outros, dá voz aos "mitos", como D. Sebastião, Diogo, cão... (também em 1° pessoa) ou ainda usa o eu lírico como quem analisa de fora (3° pessoa). São várias vozes. :-)

CURSO PALAVRA disse...

*polifonia