Baía de Santa Helena
25 À maneira de nuvens se começam
A descobrir os montes que enxergamos,
As âncoras pesadas se adereçam;
As velas, já chegados, amainamos,
E, pera que mais certas se conheçam
As partes tão remotas onde estamos,
Pelo novo instrumento de Astrolábio,
Invenção de sutil juízo e sábio,
26 Desembarcamos logo na espaçosa
Parte, por onde a gente se espalhou,
De ver cousas estranhas desejosa,
Da terra que outro povo não pisou.
Porém, eu, cos pilotos na arenosa
Praia, por vermos em que parte estou,
Me detenho em tomar do sol a altura
E compassar a universal pintura.
27 Achámos ter de todo já passado
Do Semicapro pexe a grande meta,
Estando entre ele e o círculo gelado
Austral, parte do mundo mais secreta.
Eis, de meus companheiros rodeado,
Vejo hum estranho vir, de pele preta,
Que tomaram, per força, enquanto apanha,
De mel, os doces favos na montanha.
Fernão Veloso
30 Mas, logo ao outro dia, seus parceiros,
Todos nus e da cor da escura treva,
Decendo pelos ásperos outeiros,
As peças vem buscar que este outro leva.
Domésticos já tanto e companheiros
Se nos mostram, que fazem que se atreva
Fernão Veloso a ir ver da terra o trato
E partir-seco eles pelo mato.
31 É Veloso no braço confiado
E, de arrogante, crê que vai seguro;
Mas, sendo hum grande espaço já passado,
Em que algum bom sinal saber procuro,
Estando, a vista alçada, co cuidado
No aventureiro, eis pelo monte duro
Aparece, e segundo ao mar caminha,
Mais apressado do que fora vinha.
32 O batei de Coelho foi depressa
Polo tomar; mas, antes que chegasse,
Um Etíope ousado se arremessa
A ele, por que não se lhe escapasse.
Outro e outro lhe saem; vê-se em pressa
Veloso, sem que alguém lhe ali ajudasse.
Acudo eu logo, e, enquanto o remo aperto,
Se mostra um bando negro descoberto.
33 Da espessa nuvem setas e pedradas
Chovem sobre nós outros, sem medida;
E não foram ao vento em vão deitadas,
Que esta perna trouxe eu dali ferida;
Mas nós, como pessoas magoadas,
A reposta lhes demos tão tecida,
Que em mais que nos barretes se suspeita
Que a cor vermelha levam desta feita.
34 E, sendo já Veloso em salvamento,
Logo nos recolhemos pera a armada,
Vendo a malícia feia e rudo intento
Da gente bestial, bruta e malvada,
De quem nenhum milhor conhecimento
Pudemos ter da Índia desejada
Que estarmos inda muito longe dela.
E assi tornei a dar ao vento a vela.
35 Disse então a Veloso um companheiro
(Começando-se todos a sorrir):
«Oula,Veloso amigo, aquele outeiro
É milhor de decer que de subir.»
«Si, é (responde o ousado aventureiro);
Mas, quando eu pera cá vi tantos vir
Daqueles Cães, depressa um pouco vim,
Por me lembrar que estáveis cá sem mim.»
25
— Se adereçam (v. 3.°) são preparadas.
— Astrolábio (v. 7.°): instrumento que permite calcular
a altura do Sol e, por isso, a latitude do lugar, onde
se faz a observação. — Novo, apenas no que respeita
à sua aplicação à arte de navegar.
26
- Compassar (v. 8.°): marcar com o compasso (a latitude do lugar) na carta. - Universal pintura: carta geográfica.
27
- Do semícapro Pexe... Do trópico de Capricórnio [Capricórnio é um signo representado por um ser que é metade cabra (Lat. capra) e metade peixe].
- Secreta: desconhecida.
— De meus companheiros.- Ag. da passiva.
30
- Vem (vêm) forma do v. vir.
— Domésticos: afáveis.
— O trato: os costumes.
31
- Arrogante: satisfeito com o que projectava executar.
— A vista alçada: observando os longes elevados.
32
— Coelho: Nicolau Coelho, comandante da caravela Bérrio.
— Polo tomar = por o tomar, para o tomar. — «O pronome arcaico lo, la, los, las, objecto directo de um infinitivo, combina-se na língua antiga com a preposição por, per, regente do mesmo infinitivo».
— Etíope: negro.
— Pressa (v. 5.°): aperto.
- O remo aperto (verbo apertar): estimulo, instigo os remadores. — Metonímia
33 - Tão tecida (v. 6.°): «tão ininterrupta como um tecido»
34 - Que (V. 7º) : senão
35 - Vs 4º, 7º e 8º - Ironia
36 – Reino escuro (v. 7º ): Inferno, morte.
Este episódio situa-se na narrativa de Vasco da Gama ao rei de Melinde, onde este continua a descrever a sua viagem, agora a chegada à Baía de Santa Helena e à utilização do astrolábio, instrumento novo, “Invenção de sutil juízo e sábio” que serve para “tomar do sol a altura” e, assim, determinar a localização.
Depois de desembarcados agarram um nativo, negro, “enquanto apanha, / De mel, os doces favos na montanha”, a quem dão bijutaria. No dia seguinte, outros vieram, tentando receber o mesmo. Eram pessoas afáveis e acolhedoras. Foi este o motivo para a intervenção de Fernão Veloso, com o intuito de recolher informações sobre a Índia. Crendo haver conquistado a confiança dos nativos, Fernão Veloso aventura-se a penetrar na ilha de Santa Helena. A certa altura, surge a correr a toda pressa, perseguido por vários nativos, tendo Vasco da Gama de ir em seu socorro, travando-se uma pequena luta entre eles, da qual saiu Vasco da Gama ferido numa perna. A resposta dos nautas ao ataque foi de tal forma exemplar que o narrador, Vasco da Gama, nos diz: «A reposta lhes demos tão tecida, / Que em mais que nos barretes se suspeita / que a cor vermelha levam desta feita.» A eficácia da reacção sai reforçada com o recurso à oração subordinada consecutiva e à hipérbole.
Regressados aos barcos, os marinheiros procuram gozar com Fernão Veloso, dizendo-lhe que o outeiro fora melhor de descer do que subir. Este, sem se desconcertar, respondeu-lhes que correra à frente dos nativos por se ter lembrado que os companheiros estavam ali sem a sua ajuda (estâncias 24-36). Isto denota a presença de um episódio irónico e humorístico, daí o seu carácter oralizante (“Oulá, Veloso amigo, aquele outeiro / É milhor de decer que de subir”), parecendo constituir uma ruptura com a seriedade sublime da exaltação épica dos heróis. É, no entanto, uma hábil forma de caracterizar uma faceta psicológica do homem português em momentos críticos: a audácia mais ou menos quixotesca e, se as coisas correm mal, a prontidão da resposta, de forma a nunca perder a face, mesmo que, para isso, se tenha de forjar desculpas mais ou menos esfarrapadas. O clímax irónico atinge-se na estrofe final, no saboroso diálogo que se estabelece entre Veloso e um companheiro, sendo de salientar a habilidade da resposta do ousado aventureiro”, sem acusar o toque, e mantendo a sua postura de “valentão” destemido. Interessa também salientar a expressividade da adjectivação: “arrogante”, “espessa nuvem”, “resposta (...) tecida”, “malícia feia e rudo intento / Da gente bestial, bruta e malvada”, “o ousado aventureiro”. O elevado número de nativos é dado pelo recurso ao nome colectivo: «um bando negro»; «espessa nuvem» «gente bestial». A sua malvadez é-nos dada através da adjectivação de valor pejorativo: «Malícia feia», «rudo intento»; «gente bestial, bruta e malvada». É ainda de referir a metonímia (“... enquanto o remo aperto”, estrofe 32, v. 7), a metáfora (“Da espessa nuvem setas e pedradas / Chovem sobre nós outros”), a aliteração em V (“... a cor vermelha levam desta feita”, estrofe 33, v. 8) e, finalmente, a utilização do discurso directo (estrofe 35) e de uma linguagem simples e coloquial que muito contribuem para criar as marcas de autenticidade que caracterizam este episódio.
Podemos considerar três momentos no desenvolvimento deste episódio:
a) a estrofe 31, em que se caracteriza o marinheiro Fernão Veloso (“no braço confiado”, “arrogante”) e rapidamente se insinua o que poderá ter acontecido e vir ainda a acontecer (‘Mais apressado do que fora, vinha”);
b) as estrofes 32-33, em que se relatam as dificuldades de Fernão Veloso, atacado pelos indígenas, e a escaramuça travada entre a armada e os locais;
c) finalmente, nas estrofes 34-35, faz-se o comentário do acontecido e trava-se um diálogo irónico entre Fernão Veloso e um companheiro, não perdendo aquele a oportunidade para, apesar de tudo, e contra o que seria de esperar, reincidir na sua fanfarronice.
É altura de remeter, de novo, para o texto de Maria Vitalina Leal de Matos, (p. 97), a propósito do valor renascentista de Os Lusíadas: «[…] importa reconhecer que as descobertas como tema da epopeia, além do mérito de serem um tema verídico, têm ainda outro: o da novidade. Constituem uma questão moderna, contemporânea, quiçá o efeito que melhor caracteriza a especificidade do Renascimento Europeu: a descoberta de novas terras, céus, mares, gentes, culturas.”
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