segunda-feira, 11 de junho de 2007

"Memorial do Convento" - Saramago

Análise das Primeiras páginas
(relação do rei com a rainha, infidelidades, ironia presente em toda a obra)

Nas primeiras páginas, é-nos descrita a relação entre o rei e a rainha. A corte é o centro em redor do qual se organiza o Poder.

O rei e a rainha são representantes do poder e da ordem, mas também da repressão que naturalmente é característica dum regime absolutista.

A relação conjugal resume-se a um único objectivo: dar um herdeiro à coroa. Não existe nenhum envolvimento afectivo entre o rei e a rainha. O rei cumpre “vigorosamente” o seu dever de marido e vai ao quarto da rainha duas vezes por semana a fim de concretizar o seu dever de rei. Porém, a “devota parideira” é já culpabilizada por “mais de dois anos” de esterilidade pois “que caiba a culpa ao rei, nem pensar, (…) porque abundam no reino bastardos da real semente...”

O cerimonial de que se reveste o encontro periódico do casal revela-nos uma relação em que há ausência de amor e que só se justifica na fecundidade e nunca em si mesma, como podemos verificar pelo ambiente anti-erótico, pelo excesso de roupas, pela presença das camareiras e dos camaristas, enfim, pelo artificialismo que rodeia um acto que deveria ser espontâneo e natural. (Será lido em voz alta, por três alunos, o excerto, constituído por três parágrafos, que se inicia em “Vestem a rainha e o rei camisas compridas...” até “Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.” (pp. 15/17).

A relação contratual entre D. João V e D. Maria Ana dá origem às infidelidades do rei e aos sonhos da rainha. A infidelidade do rei, já aludida quando é referida a existência de bastardos, é satiricamente referenciada quando o rei diz que as freiras o recebem “nas suas camas”, nomeadamente a madre Paula de Odivelas.

Dos sonhos da rainha dá-nos conta o narrador, logo no início da obra, quando escreve:

São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cegonha negra. (p.l7).

Os sonhos da rainha com o seu cunhado, o infante D. Francisco, deixam-na atormentada pela consciência que tem de estar em pecado por não ousar revelar em confissão aquilo que acha vergonhoso, um crime contra a castidade. É por isso que D. Maria Ana cumpre penitência na oração e peregrinando pelas igrejas. A rainha continuará a sonhar e a esconder, do seu confessor, os sonhos até ao momento em que o próprio D. Francisco os vai destruir revelando as suas verdadeiras intenções:

(...) Ora essa, que conversa tão imprópria de cunhados, el-rei ainda está vivo e, pelo poder das minhas preces, se Deus mas ouve, não morrerá, para maior glória do reino, tanto mais que para a conta dos seis filhos que está escrito terei dele, ainda faltam três, Porém, vossa majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, mas, pelos vistos, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos adivinham, Então, morrendo meu irmão, casamos, Se esse for o interesse do reino, e se daí não vier ofensa a Deus nem dano à minha honra, casaremos, Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha, Acha então vossa majestade que eu seria pior marido que meu irmão, Maus, são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem, e com esta sábia e céptica sentença se concluiu a conversação em palácio (...) (Capítulo X, pp.ll3Jll4)

Todo o capítulo é dominado pela ironia, sendo o rei e a rainha descritos caricaturalmente, numa linguagem jocosa que tenta destituí-los do seu estatuto real e aproximá-los das pessoas vulgares e mortais.

"Memorial do Convento" - Saramago

Análise das Primeiras páginas
(relação do rei com a rainha, infidelidades, ironia presente em toda a obra)

Nas primeiras páginas, é-nos descrita a relação entre o rei e a rainha. A corte é o centro em redor do qual se organiza o Poder.

O rei e a rainha são representantes do poder e da ordem, mas também da repressão que naturalmente é característica dum regime absolutista.

A relação conjugal resume-se a um único objectivo: dar um herdeiro à coroa. Não existe nenhum envolvimento afectivo entre o rei e a rainha. O rei cumpre “vigorosamente” o seu dever de marido e vai ao quarto da rainha duas vezes por semana a fim de concretizar o seu dever de rei. Porém, a “devota parideira” é já culpabilizada por “mais de dois anos” de esterilidade pois “que caiba a culpa ao rei, nem pensar, (…) porque abundam no reino bastardos da real semente...”

O cerimonial de que se reveste o encontro periódico do casal revela-nos uma relação em que há ausência de amor e que só se justifica na fecundidade e nunca em si mesma, como podemos verificar pelo ambiente anti-erótico, pelo excesso de roupas, pela presença das camareiras e dos camaristas, enfim, pelo artificialismo que rodeia um acto que deveria ser espontâneo e natural. (Será lido em voz alta, por três alunos, o excerto, constituído por três parágrafos, que se inicia em “Vestem a rainha e o rei camisas compridas...” até “Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.” (pp. 15/17).

A relação contratual entre D. João V e D. Maria Ana dá origem às infidelidades do rei e aos sonhos da rainha. A infidelidade do rei, já aludida quando é referida a existência de bastardos, é satiricamente referenciada quando o rei diz que as freiras o recebem “nas suas camas”, nomeadamente a madre Paula de Odivelas.

Dos sonhos da rainha dá-nos conta o narrador, logo no início da obra, quando escreve:

São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cegonha negra. (p.l7).

Os sonhos da rainha com o seu cunhado, o infante D. Francisco, deixam-na atormentada pela consciência que tem de estar em pecado por não ousar revelar em confissão aquilo que acha vergonhoso, um crime contra a castidade. É por isso que D. Maria Ana cumpre penitência na oração e peregrinando pelas igrejas. A rainha continuará a sonhar e a esconder, do seu confessor, os sonhos até ao momento em que o próprio D. Francisco os vai destruir revelando as suas verdadeiras intenções:

(...) Ora essa, que conversa tão imprópria de cunhados, el-rei ainda está vivo e, pelo poder das minhas preces, se Deus mas ouve, não morrerá, para maior glória do reino, tanto mais que para a conta dos seis filhos que está escrito terei dele, ainda faltam três, Porém, vossa majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, mas, pelos vistos, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos adivinham, Então, morrendo meu irmão, casamos, Se esse for o interesse do reino, e se daí não vier ofensa a Deus nem dano à minha honra, casaremos, Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha, Acha então vossa majestade que eu seria pior marido que meu irmão, Maus, são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem, e com esta sábia e céptica sentença se concluiu a conversação em palácio (...) (Capítulo X, pp.ll3Jll4)

Todo o capítulo é dominado pela ironia, sendo o rei e a rainha descritos caricaturalmente, numa linguagem jocosa que tenta destituí-los do seu estatuto real e aproximá-los das pessoas vulgares e mortais.

"Memorial do Convento" - Saramago

Análise das Primeiras páginas
(relação do rei com a rainha, infidelidades, ironia presente em toda a obra)

Nas primeiras páginas, é-nos descrita a relação entre o rei e a rainha. A corte é o centro em redor do qual se organiza o Poder.

O rei e a rainha são representantes do poder e da ordem, mas também da repressão que naturalmente é característica dum regime absolutista.

A relação conjugal resume-se a um único objectivo: dar um herdeiro à coroa. Não existe nenhum envolvimento afectivo entre o rei e a rainha. O rei cumpre “vigorosamente” o seu dever de marido e vai ao quarto da rainha duas vezes por semana a fim de concretizar o seu dever de rei. Porém, a “devota parideira” é já culpabilizada por “mais de dois anos” de esterilidade pois “que caiba a culpa ao rei, nem pensar, (…) porque abundam no reino bastardos da real semente...”

O cerimonial de que se reveste o encontro periódico do casal revela-nos uma relação em que há ausência de amor e que só se justifica na fecundidade e nunca em si mesma, como podemos verificar pelo ambiente anti-erótico, pelo excesso de roupas, pela presença das camareiras e dos camaristas, enfim, pelo artificialismo que rodeia um acto que deveria ser espontâneo e natural. (Será lido em voz alta, por três alunos, o excerto, constituído por três parágrafos, que se inicia em “Vestem a rainha e o rei camisas compridas...” até “Deus, quando quer, não precisa de homens, embora não possa dispensar-se de mulheres.” (pp. 15/17).

A relação contratual entre D. João V e D. Maria Ana dá origem às infidelidades do rei e aos sonhos da rainha. A infidelidade do rei, já aludida quando é referida a existência de bastardos, é satiricamente referenciada quando o rei diz que as freiras o recebem “nas suas camas”, nomeadamente a madre Paula de Odivelas.

Dos sonhos da rainha dá-nos conta o narrador, logo no início da obra, quando escreve:

São meandros do inconsciente real, como aqueles outros sonhos que sempre D. Maria Ana tem, vá lá explicá-los, quando el-rei vem ao seu quarto, que é ver-se atravessando o Terreiro do Paço para o lado dos açougues, levantando a saia à frente e patinhando numa lama aguada e pegajosa que cheira ao que cheiram os homens quando descarregam, enquanto o infante D. Francisco, seu cunhado, cujo antigo quarto agora ocupa, alguma assombração lhe ficando, dança em redor dela, empoleirado em andas, como uma cegonha negra. (p.l7).

Os sonhos da rainha com o seu cunhado, o infante D. Francisco, deixam-na atormentada pela consciência que tem de estar em pecado por não ousar revelar em confissão aquilo que acha vergonhoso, um crime contra a castidade. É por isso que D. Maria Ana cumpre penitência na oração e peregrinando pelas igrejas. A rainha continuará a sonhar e a esconder, do seu confessor, os sonhos até ao momento em que o próprio D. Francisco os vai destruir revelando as suas verdadeiras intenções:

(...) Ora essa, que conversa tão imprópria de cunhados, el-rei ainda está vivo e, pelo poder das minhas preces, se Deus mas ouve, não morrerá, para maior glória do reino, tanto mais que para a conta dos seis filhos que está escrito terei dele, ainda faltam três, Porém, vossa majestade sonha comigo quase todas as noites, que eu bem no sei, É verdade que sonho, são fraquezas de mulher guardadas no meu coração e que nem ao confessor confesso, mas, pelos vistos, vêm ao rosto os sonhos, se assim mos adivinham, Então, morrendo meu irmão, casamos, Se esse for o interesse do reino, e se daí não vier ofensa a Deus nem dano à minha honra, casaremos, Prouvera que ele morra, que eu quero ser rei e dormir com vossa majestade, já estou farto de ser infante, Farta estou eu de ser rainha e não posso ser outra coisa, assim como assim, vou rezando para que se salve o meu marido, não vá ser pior outro que venha, Acha então vossa majestade que eu seria pior marido que meu irmão, Maus, são todos os homens, a diferença só está na maneira de o serem, e com esta sábia e céptica sentença se concluiu a conversação em palácio (...) (Capítulo X, pp.ll3Jll4)

Todo o capítulo é dominado pela ironia, sendo o rei e a rainha descritos caricaturalmente, numa linguagem jocosa que tenta destituí-los do seu estatuto real e aproximá-los das pessoas vulgares e mortais.

Deixis


A deixis designa o conjunto de palavras ou expressões (expressões deícticas) que têm como função ‘apontar’ para o contexto situacional. Deste modo, essas palavras ou expressões, ao serem utilizadas num discurso, adquirem um novo significado, uma vez que o seu referente depende do contexto. Por outras palavras, a deixis pode ser definida como o conjunto de processos linguísticos que permitem inscrever no enunciado as marcas da sua enunciação, que é única e irrepetível. Assim, assinalam o sujeito que enuncia (locutor), o sujeito a quem se dirige (interlocutor), o tempo e o espaço da enunciação.
O sujeito da enunciação/locutor é o ponto central a partir do qual se estabelecem todas as coordenadas do contexto: eu é aquele que diz eu no momento em que fala; tu é a pessoa a quem o eu se dirige; agora é o momento em que o eu fala; aqui é o lugar em que o eu se encontra; isto é um objecto que se encontra perto do eu, os tempos verbais indicam um tempo anterior, simultâneo ou posterior ao momento da enunciação (ex.: escrevi, escrevo, escreverei). Com efeito, é o sistema de coordenadas referenciais (EU/TU—AQUI—AGORA) da enunciação que possibilita a atribuição de sentidos referenciais.
“A própria palavra deixis, pelo seu sentido etimológico, está associada ao gesto de “apontar”.

O diálogo que se segue apresenta a negrito os elementos deícticos:

Joana: Eu amanhã encontro-te aqui às 10h.
Pedro: Eu não estou disponível! Pode ser de tarde?

No primeiro enunciado, eu significa Joana, enquanto, no segundo, eu significa Pedro, tal como o pronome pessoal te do primeiro enunciado. Também o deíctico amanhã só pode ser correctamente interpretado com conhecimento do dia em que decorreu este diálogo, uma vez que significa sempre o dia seguinte ao da enunciação. Do mesmo modo, o advérbio aqui apenas pode ser definido conhecendo o local da enunciação. Finalmente, sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto e pessoa-número indicam, neste caso, simultaneamente a pessoa e o tempo verbal: o tempo utilizado (presente do indicativo) indica uma acção que decorrerá num futuro próximo ao do presente da enunciação.
Assim, a interpretação deste enunciado requer o conhecimento das coordenadas AGORA-AQUI, caso contrário, a comunicação revela-se ineficaz. O mesmo acontece em relação à coordenada temporal num cartaz em que se omitiu a data a que se refere hoje:

Hoje, greve geral dos ferroviários!

Os deícticos inserem-se em diversas categorias gramaticais, adquirindo sentido pleno apenas no contexto em que se emitem. Assim, pertencem à categoria dos deícticos:
— os pronomes pessoais;
— os pronomes e determinantes possessivos;
— os pronomes e determinantes demonstrativos;
— os artigos;
— os advérbios de lugar e de tempo;
— os tempos verbais;
— alguns vocábulos, como ir / vir (movimento de afastamento / aproximação em relação ao espaço em que se encontra o locutor e interlocutor, respectivamente).

Em função da sua natureza deíctica, é possível apresentar a seguinte classificação:

Deixis pessoal — indica as pessoas do discurso, permitindo seleccionar os participantes na interacção comunicativa. Integram este grupo os pronomes pessoais (ex.: tu, me, nós, etc.), determinantes e pronomes possessivos (ex.: o meu, o vosso, teu, etc.), sufixos flexionais de pessoa-número (ex.: falas, falamos, etc.), bem como vocativos. (Algumas formas verbais não apresentam um sufixo flexional específico de pessoa-número (ex.: falo, disse, fizer, etc.). Nestes casos, o sufixo inclui as informações relativas ao tempo-modo-aspecto e pessoa-número, tratando-se assim de uma amálgama).

Quanto eu disser não ouças,
quanto eu fizer não vejas;
e, se eu estender as mãos,
não me estendas as tuas.

Aceita que eu exista como os sonhos
que ninguém sonha,
as imagens malditas que no espelho
são noite irreflectida

Talvez que então
da pura solidão
eu desça à vida.
(J. Sena, Fidelidade)

Deixis espacial — assinala os elementos espaciais, tendo como ponto de referência o lugar em que decorre a enunciação. Ou seja, evidencia a relação de maior ou menor proximidade relativamente ao lugar ocupado pelo locutor. Cumprem esta função os advérbios ou locuções adverbiais de lugar (ex.: aqui, cá, além, acolá, aqui perto, lá de cima, etc.), os determinantes e pronomes demonstrativos (ex.: este, essa, aquilo, o outra, a mesma, etc.), bem como alguns verbos que indicam movimento (ex.:
ir, partir; chegar; aproximar-se; afastar-se, entrar, sair, subir, descer, etc.).

Vamos até ali... — convidou, implorativo, o Leonel, perdido pela namorada.
Ali, aonde? — perguntou ela, sem forças para resistir.
Ali adiante...

(M. Torga, Novos Contos da Montanha)

Deixis temporal — localiza, no tempo, factos, tomando como ponto de referência o “agora” da enunciação. Desempenham esta função os advérbios, locuções adverbiais ou expressões de tempo (ex.: amanhã, ontem, na semana passada, no dia seguinte, etc.) e sufixos flexionais de tempo-modo-aspecto (ex.: falarei; faláveis, etc.).

Depois de amanhã, sim, só
depois de amanhã...
Levarei amanhã
a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
(…)
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida
triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático

Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã
(Á. Campos, Poesias)

Deixis social — assinala a relação hierárquica existente entre os participantes da interacção discursiva e os papéis por eles assumidos. Servem de suporte a esta função os elementos linguísticos pertencentes às chamadas formas de tratamento (ex.:
o senhor, vossa excelência, senhor director, etc.).

Eu quero prevenir já o senhor doutor de que em minha casa um banho é um banho, quero dizer, é para uma pessoa se lavar. (V. Ferreira, Aparição)

sexta-feira, 4 de maio de 2007

"Óde Triunfal" de Álvaro de Campos

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!



À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parcks.
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

(...)
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento da deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo dos navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre os dentes o teu cap de duas cores.
(...)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro ás vossas esquinas.
(…)

Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como queria
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

(…)

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim.
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus.
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-há! He-hô! H-o-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!


Londres, 1914 – Junho

Álvaro de Campos.

Dum Livro chamado Arco de Triunfo, a publicar.

Junho de 1914 (publicado no Orpheu, nº 1, 1915).



Trata-se de um poema do heterónimo Álvaro de Campos, poeta que surge como reflexo do ardor futurista de Fernando Pessoa. A observação do mundo que o rodeia naquele início do século XX, retratando a rebeldia e a insubmissão dos movimentos de vanguarda. Olha também para o futuro e canta-o na sua poesia.
Na obra de Álvaro de Campos reconhece-se uma evolução ao longo de três fases:
A decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações; a futurista e sensacionista, caracterizada pela exaltação da energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da força até situações de paroxismo; e finalmente a fase intimista em que o poeta diante da incapacidade de realizar o que projectou entra novamente na abulia, no abatimento, que provoca um supressíssimo cansaço.
Este poema integra-se claramente na segunda fase de evolução do poeta a futurista sensacionista. Esta foi influenciada pelo futurismo de Marinetti e pelo sensacionismo de Whitman. Se bem que ambos estejam presentes na Ode Triunfal, o facto é que o sensacionismo acaba por absorver o futurismo.
Neste poema, merece desde já a nossa atenção o título. Ode remete-nos para um canto de exaltação. Neste caso o “eu” exalta a máquina, a vida mecânica e industrial, a civilização industrial, o quotidiano das gentes, ou melhor, as sensações que defluem do amor à vida moderna em toda a sua variedade. Com o epíteto triunfal pretende-se vincar, mas também hiperbolizar o sentido de ode. Dá-nos deste modo logo a sensação de qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma.
Foi exactamente com os poemas desta segunda fase de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa mais se afastou do lirismo tradicional. Daqui resulta a dificuldade de analisar estes poemas.
A rotura com a lírica tradicional verifica-se mormente na irregularidade das estrofes. Existem estrofes de quatro versos, de dez, de onze, de dezasseis, etc. Semelhante irregularidade se detecta na métrica: há versos de cinco a vinte e uma sílabas e outros em que a contagem se torna difícil, sobretudo quando entram sons que não são signos linguísticos. Da conjugação destes elementos resulta um ritmo nervoso e irregular, que traduz a dinâmica vivencial do sujeito poético, a sua energia interior.
Ao nível da sintaxe é também possível constatar o afastamento da lírica tradicional. A quase ausência de subordinação (algumas relativas, poucas comparativas e uma consecutiva) corrobora esta afirmação. As orações coordenadas marcam parataticamente o ritmo rápido do poema. Cada oração coordenada exprime um fenómeno da vida moderna que cruzou o pensamento do sujeito de enunciação. Ao longo do poema surgem ainda exclamações que sublinham a emoção do sujeito diante dos fenómenos da vida moderna. Repare-se nos últimos versos: vinte e cinco são exclamações, sendo apenas três afirmações onde se verifica a presença do verbo. Os infinitivos marcam também presença nas expressões exclamativas. Devemos ainda considerar nesta linha de pensamento as repetições e as enumerações gradativas, permitindo a justaposição de palavras, que brotam torrencialmente através dessas enumerações falsamente caóticas, que conduzem ao excesso de expressão definido por José Augusto Seabra. Tudo o que até agora mencionei, aliado a uma catadupa de figuras (metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas, etc.) produzem um estilo ferozmente dinâmico que jamais se produziu em Portugal.
Aparecem também alguns desvios sintácticos “ fera para a beleza de tudo isto”; “Por todos os meus nervos dissecados fora”; “frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita”.
Há palavras que não transportam em si interesse lírico. Não obstante Álvaro de Campos como o escritor parnasiano recorreu a uma série de vocábulos prosaicos até de índole técnica “fábrica”, “maquinismos”, “dissecados”, “correias de transmissão”, “êmbolos”, “cargas de navios”, “guindastes”, “chumaceiras”, etc., adaptando a mudança da vida moderna à mudança no conteúdo ideológico das palavras.
Sendo esta a primeira obra de Campos, tem o dom de despertar em nós admiração e até espanto, contribuindo para tal, como já referi, o próprio vocabulário.
O poema inicia-se com a iluminação das lâmpadas eléctricas. Somos colocados no meio de um ambiente fabril, em que o sujeito poético escreve num estado febril. Sentimos de repente um rugir “rugindo os dentes” que nos afasta do tempo dos outros heterónimos. Estamos num tempo de modernidade.
Logo no início da segunda estrofe somos lançados no meio dos ruídos de todos os elementos que constituem a dita fábrica. O homem enfraquecido pela febre, exposto aos barulhos produzidos pelas máquinas, é arrebatado pelos movimentos dos mecanismos (rodas, engrenagens). O seu ritmo coaduna-se ao ritmo das máquinas que estão à sua volta. São as papilas, os lábios, os nervos e a sua cabeça que giram como os mecanismos da civilização moderna. Todo este mundo chega até si através dos sentidos que estão alerta procurando abarcar tudo.
A maioria das suas frases são nominais, jogando apenas com verbos conjugados que se referem ao sujeito poético “tenho febre”, “escrevo”, “sinto”, “canto”. Os verbos no infinitivo são também recorrentes. A forma como o “ eu” observa e tenta abarcar o mundo não parece dar-lhe tempo para organizar o seu discurso de outro modo. O uso recorrente de exclamações, interjeições e onomatopeias: “r-r-r-r-r- eterno!; “Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios”; “Hup-lá, hup-lá, hup lá hô...; as apóstrofes “Ó fazendas nas montras”, Ó manequins!, “Ó últimos figurinos! Ó cais, ó portos, ó comboios!....; as enumerações “Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!; “guerras, tratados, invasões, Ruído, injustiças, violências” e nas apóstrofes; as anáforas “Olá grandes armazéns, ... Olá anúncios eléctricos... Olá tudo!; “Eh-lá-hô fachadas, Eh-lá-hô elevadores, Eh-lá-hô recomposições ministeriais!” são os recursos estilísticos que lhe permitem cantar com excesso de expressão as suas sensações.
Acrescente-se ainda o recurso a comparações inesperadas “olhando os motores como a uma natureza tropical”; “Possuo-vos como a uma mulher bela”; “um orçamento é tão natural como uma árvore e um parlamento tão belo como uma borboleta.”
O excesso de expressão corporiza-se ainda nas aliterações onomatopaicas “ de ferro e fogo e força” “ rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando” e “quase silêncio ciciante”.
Note-se ainda a frequência de uma série de sequências de três ou mais adjectivos ”Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável”; “Em vós ó grandes, banais, úteis, inúteis”; “Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus”; Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos”. Veja-se ainda uma série de adjectivos e advérbios que servem a exaltação do belo atroz “Maravilhosa gente humana que vive como cães”; “fauna maravilhosa do fundo do mar da vida”; “Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transtlânticos!”; “ruído cruel e delicioso da civilização”. Agora os advérbios “Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos”; “Amo-vos carnivoramente / Pervertidamente”
Termina de forma abrupta o furor do eu que exalta o seu amor pela civilização, passando o tom a ser de uma certa fatalidade da morte, a ternura perdida na infância e o mistério do mundo.
Campos aproxima-se de Caeiro no recurso ao verso livre e na importância conferida à sensação. Mas o que no mestre é a “sensação das coisas como são” em Campos, o que salta à vista é a fome de um mundo de sensações novas. Daí que sinta o bem como sente o mal, o mórbido como sente o saudável, o normal como sente o anormal, única forma de “ser toda a gente e toda a parte” e “sentir tudo de todas as maneiras”.
Assim o que é serenidade epicurista em Caeiro é ânsia futurista do novo Homem (segundo Marinetti deveria este ser isento, saudável, amoral, dominador e livre de todas as peias) em Campos “que como uma febre e um cio e uma fome agita” o impele a querer sentir tudo de todas as maneiras.

segunda-feira, 23 de abril de 2007

análise da obra de Sttau Monteiro - "Felizmente Há Luar!"

“Felizmente Há Luar!”, de Luís de Sttau Monteiro

Contextualização

A história desta peça passa-se na época da revolução francesa de 1789.

As invasões francesas levaram Portugal à indecisão entre os aliados e os franceses. Para evitar a rendição, D. João V foge para o Brasil. Depois da primeira invasão, a corte pede auxilio a Inglaterra para reorganizar o exército. Estes enviam-nos o general Beresford.

Luís de Sttau Monteiro denuncia a opressão vivida na época do regime salazarista através desta época particular da história. Assim, o recurso à distanciação histórica e à discrição das injustiças praticadas no inicio do século XIX, permitiu-lhe, também, colocar em destaque as injustiças do seu tempo, o abuso de poder do Estado Novo e as ameaças da PIDE, entre outras.

“Felizmente Há Luar!” é um texto bifronte, um texto entre dois contextos, relativo a dois tempos, o passado e o presente, estando aquele ao serviço deste. Trata-se de uma metáfora, no sentido em que muitas das situações apresentadas no seu contexto oitocentista se podem transpor para o tempo da escrita e da representação, as décadas de 50 e 60 do século XX. Pode ser considerado uma metáfora do seu próprio tempo, metáfora didáctica que apela à razão para que através desta se atinja uma consciência social e política.

Uma leitura atenta do texto, com o objectivo de encontrar pontes de sentido que permitam a ligação dos dois contextos referidos, pode iniciar-se com as referências que a didascália “Começa a ouvir-se, ao longe, o ruído de tambores” indica, conjugada com “Ouve o som dos tambores” e “(Todos se levantam e escutam a medo [...] e preparam-se para fugir [...])“. O ruído dos tambores funciona como metonímia de um poder repressor, sempre presente tanto no contexto político absolutista como no fascista. Repare-se que os tambores são ouvidos por populares que estão reunidos para comentar a situação política e fazem-no a medo: a mesma situação ocorria frequentemente sob o regime salazarista onde qualquer reunião era tida como potencialmente suspeita consequentemente, reprimida.

Esta questão da falta de liberdade de reunião e expressão surge logo de seguida no texto quando o Antigo Soldado entoa uma quadra onde se refere explicitamente a “liberdade”.

Na continuação da conversa entre os populares, surge a referência ao general Comes Freire, classificado entusiasticamente pelo Antigo Soldado como “Um amigo do povo!”. Através de Manuel que diz, referindo-se ao general, “Se ele quisesse, lança-se a semente da esperança com a possibilidade de acção do general em direcção à liberdade ansiada. Ora é este momento precisamente que mais deve ter tocado o leitor/espectador da obra, as pessoas empenhadas na luta antifascista em Portugal nas décadas atrás referidas: de facto, rapidamente terão estabelecido uma relação de proximidade, senão de identificação, entre o general Gomes Freire e o general Humberto Delgado.

Esta analogia terá sido pois apreendida pelos primeiros leitores da obra. O contributo do general Gomes Freire para a alteração da situação política do seu tempo possibilitado pela didascália a propósito do silêncio que as palavras ousadas de Manuel provocaram: “Este silêncio é pesado. [...] Ainda têm nos ouvidos o ruído dos tambores, símbolo de uma autoridade sempre presente e sempre pronta a interferir”. É contra esta “autoridade” repressiva que Gomes Freire se poderá eventualmente levantar; do mesmo modo que Humberto Delgado o tentou fazer: a identificação é indiscutível. E se se atentar nas palavras de Vicente, logo de seguida, “Se ele quisesse? Mas se ele quisesse o quê? Vocês ainda não estão fartos de generais?”, melhor se pode aprofundar a leitura que vê em Gomes Freire o general Humberto Delgado: de facto, também aquando da sua candidatura, havia sectores da esquerda portuguesa que não o viam com bons olhos, precisamente por ser um militar saído do exército que sustentava o regime.

É o mesmo Vicente que lança uma acusação a Gomes Freire, indiciando-o como “estrangeirado”, referindo-se à sua formação austríaca e francesa: como se sabe, ele tomou nesses países contacto com as novas ideias políticas saídas da Revolução Francesa. Também Humberto Delgado terá tomado consciência das virtudes da liberdade política enquanto adido militar nos Estados Unidos.

A concepção da personagem Vicente contribui para estabelecer identificações entre os dois tempos. Ela pode ser considerada um bom exemplo do tipo pidesco que pululou em Portugal durante o Estado Novo: de origem popular, trai o povo a que pertence para subir na vida. Também a grande maioria da polícia política fascista passou por um percurso semelhante. E, se se atentar nas palavras da mesma personagem mais adiante, pode afirmar-se que elas remeteram sem dúvida os leitores de Sttau Monteiro para a figura máxima do regime nesse tempo: Salazar. De facto o percurso social e político do ditador está bem sintetizado por Vicente: “Os degraus da vida são logo esquecidos por quem sobe a escada... Pobre de quem lembre ao poderoso a sua origem... Do alto do poder, tudo o que ficou para trás é vago e nebuloso”.

É precisamente o poder que aparece seguidamente na peça: absolutista, com características que permitem imediata aproximação ao fascismo do Estado Novo. O governo absolutista apresenta-se como uma trindade: uma componente civil (D. Miguel), uma religiosa (Principal Sousa) e uma militar (Beresford), que sustenta as duas anteriores. Também o regime fascista apresentava esta estrutura: Salazar no poder civil, Cerejeira no religioso e o exército como sustentáculo do regime. De tal modo que, quando o exército não quis, o regime caiu.

A ligação entre o poder político e o religioso é proclamada pelo Principal Sousa: “Diz o Eclesiastes que, tendo Deus dividido o género humano em várias nações, a cada uma delas deu um príncipe que a governasse... É de origem divina o poder dos reis e é portanto a sua—e não a do povo — a voz de Deus” .

Estes três esteios do poder conspiram entre si para manter o estado de coisas a nível político. Num contexto social que dá indícios de agitação por comunhão com as ideias de liberdade que sopram de França e do Brasil — não será por acaso que D. Miguel fala da “revolta de Pernambuco”, movimento que punha em causa a origem divina do poder real, uma revolta passada na colónia que era uma democracia ao tempo da escrita da peça — num contexto em que, nas palavras de D. Miguel, “o povo fala abertamente em revolução”, reflecte-se o ambiente de esperança na liberdade que se vivia em Portugal nos últimos anos da década de 50, exacerbada pela candidatura de Humberto Delgado à Presidência da República.

Outra referência que permite a identificação dos dois tempos, e que funciona como denúncia do obscurantismo em que o poder fascista mantinha o povo, ocorre quando, propondo Vicente ao Principal Sousa que se ensine o povo a ler, o prelado responde: “[...] a sabedoria é tão perigosa como a ignorância!”: ora o mesmo pressuposto fez com que o poder ditatorial em Portugal investisse muito pouco na alfabetização das camadas populares, como ainda hoje se sente. Esta questão do ensino é abordada de novo mais adiante pelo Principal Sousa, que informa os colegas de triunvirato que “[...I é cada vez maior o número dos que só pensam aprender a ler...” .

A mesma personagem prenuncia o “orgulhosamente sós” que será anos mais tarde bandeira do regime salazarista, quando afirma: “Temos uma missão a cumprir, uma missão sagrada e penosa: a de conservar no jardim do Senhor este pequeno canteiro português. Enquanto a Europa se desfaz, o nosso povo tem de continuar a ver, no Céu, a Cruz de Ourique”.

A união dos três poderes referidos, existente tanto no estertor do absolutismo como durante os anos da ditadura em Portugal, aparece nítida na didascália “(Ilumina-se o palco. D. Miguel Forjaz, Beresford e o Principal Sousa estão sentados em três cadeiras pesadas e ricas com aparência de tronos)”.´

O poder discricionário absolutista/fascista, o tipo de justiça programada/manipulada que em ambos os regimes ocorre, está patente na conjura que se arma contra Gomes Freire. Diz D. Miguel, dirigindo-se ao Principal Sousa: “Reverência, as provas judiciais pertencem ao domínio da razão e, se não pudermos condenar nesse domínio, faremos com que o julgamento decorra no outro, o da emoção, já que a emoção, Reverência, nem carece de provas, nem se apoia na razão”. Pouco depois D. Miguel e o Principal Sousa traçarão o programa desta irrupção da emoção como contributo para destruir Gomes Freire.

Um dos momentos do texto em que melhor se verifica a identificação entre Humberto Delgado e Gomes Freire ocorre quando Morais Sarmento adverte os governantes de que a conspiração de Gomes Freire se destina a “implantar neste reino o sistema das cortes”, isto é, a democracia representativa; ora também Humberto Delgado não fizera segredo do destino que pretendia dar a Salazar no caso de ser eleito, e sabe-se que o objectivo do derrube da ditadura implicava o aparecimento da democracia parlamentar tal como quase toda a Europa ocidental a conhecia então e como a conhecemos nós desde o 25 de Abril de 1974.

Outras situações que nos permitem ainda a transposição de tempos referida são as seguintes: Gomes Freire e os outros onze presos funcionam como denúncia dos presos políticos do regime salazarista; Beresford representa a ajuda estrangeira ao regime do Estado Novo, ajuda que, embora consciente da natureza política fascista deste, sempre existiu; Andrade Corvo e Morais Sarmento, juntamente com Vicente e os dois polícias, são o espelho de organizações de denúncia e repressão como a Legião Portuguesa ou a PIDE/DGS; Matilde pode ser considerada o reflexo de mães, esposas, irmãs de presos políticos, que vão adquirindo consciência política com a situação do familiar; populares como Manuel, Rita ou o Antigo Soldado representam a população que, embora acreditando na acção do general Humberto Delgado, não apresenta capacidade de acção e acaba marcada pela desesperança; de Sousa Falcão se pode dizer que aponta para todos aqueles que, embora amigos de presos políticos e conscientes da ditadura e da necessidade de agir, não ousam actuar; finalmente, Frei Diogo, pode ser entendido como metonímia dos elementos do clero católico que, conhecedores da situação de opressão e miséria do povo, não ousam levantar a voz.

Carácter épico

“Felizmente Há Luar! ” é um drama narrativo, de carácter social, dentro dos princípios do teatro épico, na linha do teatro de Brecht exprime a revolta contra o poder e a convicção de que é necessário mostrar o mundo e o homem em constante devir. Defende as capacidades do homem que tem o direito e o dever de transformar o mundo em que vive. Por isso, oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar posição.

Inspirado na teoria marxista, que apela às reflexão, não só no quadro da representação, mas também na sociedade em que se insere.

De acordo com Brecht, Sttau Monteiro pretende representar o mundo e o homem em constante evolução de acordo com as relações sociais. Estas características afastam-se da concepção do teatro aristotélico que pretendia despertar emoções, levando o publico a identificar-se com o herói. O teatro moderno tem como preocupação fundamental levar os espectadores a pensar, a reflectir sobre os acontecimentos passados e a tomar posição na sociedade em que se inserem. Surge, assim, a técnica do distanciamento que propõem um afastamento entre o actor e a personagem e entre o espectador e a história narrada, para que, de uma forma mais real e autêntica, possam fazer juízos de valor sobre o que se está a ser representado.

Desta forma, o teatro já não se destina a criar terror ou piedade, isto é, já não tem uma função purificadora, realizada através das emoções, tendo, então, uma capacidade crítica e analítica para quem o observa. Brecht pretendia substituir o “sentir” por “pensar”, levando o público a entender de forma clara a sua mensagem por meio de gestos, palavras, cenários, didascálicas e focos de luz.

Estes são, também, os objectivos de Sttau Monteiro, que evoca situações e personagens do passado (movimento liberal oitocentista), usando-as como pretexto para falar do presente (ditadura salazarista) e, assim, pôr em evidencia a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a injustiça e todas as formas de perseguição.


Paralelismo entre passado e as condições históricas dos anos 60: denuncia da violência


Século XIX – 1817

Século XX – anos 60


Agitação social que levou à revolta de 1820

Agitação social: conspirações internas; principal erupção da guerra colonial


Regime absolutista e tirano

Regime ditatorial salazarista


Classes hierarquizadas, dominantes, com medo de perder privilégios

Classes exploradas; desigualdade entre abastados e pobres


Povo oprimido e resignado

Povo reprimido e explorado


Miséria, medo, ignorância, obscurantismo mas “felizmente há luar”

Miséria, medo, analfabetismo, obscurantismo mas crença nas mudanças


Luta contra a opressão do regime

Luta contra o regime totalitário e ditatorial


Perseguições dos agentes de Beresford

Perseguições da PIDE


Denuncias de Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento

Denuncias dos “bufos”


Censura à imprensa

Censura total


Repressão dos conspiradores; execução sumaria e pena de morte

Prisão; duras medidas de repressão e tortura; condenação sem provas


Execução de Gomes Freire

Execução de Humberto Delgado


Revolução de 1820

Revolução do 25 de Abril de 1974

- Características da obra:

- personagens psicologicamente densas e vivas

- comentários irónicos e mordazes

- denúncia da hipocrisia da sociedade

- desfesa intransigente da justiça social

- teatro épico: oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar uma posição

- intemporalidade da peça remete-nos para a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a traição, a injustiça e todas as formas de perseguição

- preocupação com o homem e o seu destino

- luta contra a miséria e a alienação

- denúncia a ausência de moral

- alerta para a necessidade de uma superação com o surgimento de uma sociedade solidária que permitia a verdadeira realização do homem

Personagens

A análise das personagens em Felizmente Há Luar! leva a questionar o seu estatuto. Com efeito, Gomes Freire de Andrade assume centralidade na obra, apesar de nunca surgir em cena, O autor coloca-o na lista das personagens, dizendo que “está sempre presente, embora nunca apareça”.

Gomes Freire é apresentado como símbolo da defesa da liberdade, bipolarizando todas as outras personagens contra ou a seu favor, mesmo quando não têm a coragem de o seguir abertamente, como é o caso dos populares ou de Sousa Falcão.

É neste âmbito que podemos dividir as personagens em dois grupos distintos: as que detêm o poder autoritário e repressivo ou colaboram com ele, e as que estão ligadas ao desejo e luta pela liberdade e, nessa medida, constituem um contrapoder.

Esta divisão das personagens mostra, também, como o mundo ideológico é independente do mundo social.

Cada personagem representa, não um grupo social ou profissional, mas uma atitude ideológica, activa ou passiva.

Em Felizmente Há Luar!, mais importante do que a história das personagens propriamente dita, é a tomada de consciência de uma problemática social geral.

Nesta perspectiva, as oposições ricos vs. pobres e oprimidos vs. opressores são as mais fortes e evidentes. Outra há, no entanto, que, passando mais despercebida, está nitidamente marcada na obra: masculino vs. feminino.

O mundo da acção política e social era masculino. A mulher era a “sombra” do homem e tinha como tarefas cuidar do seu bem-estar e criar-lhe e educar-lhe os filhos.

Na obra, perante um mundo masculino, encontram-se duas mulheres de estatuto social diferente, mas que apresentam o mesmo tipo de relação com este. O afecto de Manuel por Rita é evidente no carinho com que ele a trata quando a vê partilhar o desespero de Matilde, assim como o afecto do general por Matilde o é também quando, não tendo dinheiro, em Paris, Gomes Freire vende duas medalhas e lhe compra uma saia. No entanto, vê-se que Rita obedece sempre ao marido sem qualquer contestação, mesmo quando se pressente que esse comportamento não lhe agrada, e Matilde, para além de andar “na esteira” de Gomes Freire, é mantida numa redoma, não sabendo nada do que se passa à sua volta, nem como reagir perante a prisão do general. Este desconhecimento do mundo masculino impede-a de partilhar sonhos idealistas e acaba por perturbar, também, o seu mundo afectivo, ao provocar distanciamento entre ela e Comes Freire. Para além disso, traz-lhe a incapacidade de reagir quando esse mundo exterior se abate sobre o seu mundo.

Há três grupos importantes de personagens no poema:

1. Povo

® Rita, Antigo Soldado, Populares

· Personagens colectiva

· Representam o analfabetismo e a miséria

· Escravizado pela ignorância

· Não tem liberdade

· Desconfiam dos poderosos

· São impotentes face à situação do país (não há eleições livres, etc.)

® Manuel

· Denuncia a opressão

· Assume algum protagonismo por abrir os dois actos

· Papel de impotência do povo

® Matilde

· Personagem principal do acto II

· Companheira de todas as horas de Gomes Freire

· Forte, persistente, corajosa, inteligente, apaixonada

· Não desiste de lutar, defendendo sempre o marido

· Põe de lado a auto-estima (suplica pela vida do marido)

· Acusa o povo de cobardia mas depois compreende-o

· Personifica a dor das mães, irmãs, esposas dos presos políticos

· Voz da consciência junto dos governadores (obriga-os a confrontarem-se com os seus actos)

· Desmascara o Principal Sousa, que não segue os princípios da lei de Cristo

® Sousa Falcão

· Amigo de Gomes Freire e Matilde

· Partilha das mesmas ideias de Gomes Freire mas não teve a sua coragem

· Auto-incimina-se por isso

· Medroso

Delatores

Representam os “bufos” do regime salazarista.

® Vicente

· É do povo mas trai-o para subir na vida

· Tem vergonha do seu nascimento, da sua condição social

· Faz o que for preciso para ganhar um cargo na polícia

· Demagogo, hipócrita, traidor, desleal e sarcástico

· Falso humanitário

· Movido pelo interesse da recompensa

· Adulador do momento

® Andrade Corvo e Morais Sarmento

· Querem ganhar dinheiro a todo o custo

· Funcionam como “bufos” também pelo medo que têm das consequências de estar contra o governo

· Mesquinhos, oportunistas e hipócritas

2. Governadores

Representam o poder político e são o cérebro da conjura que acusa Gomes Freire de traição ao país; não querem perder o seu estatuto; são fracos, mesquinhos e vis; cada um simboliza um poder e diferentes interesses; desejam permanecer no poder a todo o custo

® Beresford

· Representa o poder militar

· Tem um sentimento de superioridade em relação aos portugueses e a Portugal

· Ridiculariza o nosso povo, a vida do nosso país e a atrofia de almas

· Odeia Portugal

· Está sempre a provocar o principal Sousa

· Não é melhor que aqueles que critica mas é sincero ao dizer que está no poder só pelo seu cargo que lhe dá muito dinheiro

· Tem medo de Gomes Freire (pode-lhe tirar o lugar)

· Oportunista, severo, disciplinar, autoritário e mercenário

· Bom militar, mau oficial

® Principal Sousa

· É demagogo e hipócrita

· Não hesita em condenar inocentes

· Representa o poder clerical/Igreja

· Representa o poder da Igreja que interfere nos negócios do estado

· Não segue a doutrina da Igreja para poder conservar a sua posição

· Não tem argumentos face ao desmascarar que sofre de Matilde

· Tem problemas de consciência em condenar um inocente mas não ousa intervir para não perder a sua posição confortável no governo

· Fanático religioso

· Corrompido pelo poder eclesiástico

· Desonesto

· Odeia os franceses

· Defende o obscurantismo

® D. Miguel Forjaz

· Representa o poder político e a burguesia dominadora

· Quer manter-se no poder pelo seu poder político-económico

· Personifica Salazar

· Prepotente, autoritário, calculista, servil, vingativo e frio

· Corrompido pelo poder

· Primo de Gomes Freire

v Gomes Freire de Andrade

· Representa Humberto Delgado

· Personagem virtual/central

· Sempre presente nas palavras das outras personagens

· Caracterizado pelo Antigo Soldado, por Manuel; D. Miguel e Beresford

· Idolatrado pelo povo

· Acredita na justiça e na luta pela liberdade

· Soldado brilhante

· Estrangeirado

· Símbolo da esperança e liberdade

v Polícias: representam a PIDE

v Frei Diogo de Melo: representam a Igreja consciente da situação do país...

Tempo

® Tempo histórico ou tempo real (século XIX - 1817)

· Invasões francesas (desde 1807): rei no Brasil

· Ajuda pedida aos ingleses (Beresford)

· Regime absolutista

· Situação económica portuguesa má: dinheiro ia para a corte no Brasil

· Regência, influenciada por Beresford (símbolo do poder britânico em Portugal)

· Primeiros movimentos liberais (1817), com a conspiração abortada de Gomes Freire

· 25 De Maio de 1817 – prisão de Gomes Freire; 18 de Outubro de 1817 – enforcado, datas condensadas em dois dias na peça (tempo de acção dramática)

· Governadores viam na revolução a destruição da estrutura tradicional do Reino e a supressão dos privilégios das classes favorecidas

· O povo via na revolução a solução para a situação em que se encontrava

· Revolução liberal de 1820

· Implantação do liberalismo em 1834, com o acordo de Évora-Monte

® Tempo metafórico ou tempo da escrita (século XX - 1961)

· Permanentemente presente (implícito)

· Época conturbada em 1961: guerra colonial angolana; greves; movimentos estudantis; pequenas “guerrilhas” internas; crescente aparecimento de movimentos de opinião organizados; oposição política

· Situação política, social e económica de desagrado geral

· Regime ditatorial salazarista: desigualdade entre abastados e pobres muito grande; povo reprimido e explorado; miséria, medo; analfabetismo e obscurantismo

· PIDE, “bufos”; censura; medidas de repressão/tortura e condenação sem provas

· Sttau Monteiro evoca situações e personagens do passado como pretexto para falar do presente.

· Grande dualidade de conceitos entre os dois tempos: Gomes Freire é Humberto Delgado; os governadores três são o regime salazarista; Vicente e os delatores são os “bufos”; os homens de Beresford são a PIDE…

O futuro

A projecção do tempo no futuro é importante para a revelação do mundo interior e, por isso, tem grande destaque em Felizmente Há Luar!

1) Desejos para o futuro

Para a compreensão das personagens e dos seus comportamentos é importante conhecer os desejos para o futuro que norteiam os seus objectivos.

  • Vicente recorre à denúncia para obter o cargo de polícia que realizará o seu sonho de bem-estar socioeconómico.
  • Morais Sarmento e Andrade Corvo planeiam o futuro discorrendo não só sobre as vantagens que a denúncia lhes trará, mas também sobre os inconvenientes sociais dessa traição e modo de os ultrapassar.
  • Beresford revela que é o seu sonho de poder viver em Inglaterra como um gentleman que motiva o seu comportamento.
  • D. Miguel afirma que a sua acção visa a construção de “um Portugal próspero e feliz, com um povo simples, bom e confiante, que viva lavrando e defendendo a terra, com os olhos postos no Senhor”, um país em que a nobreza dirija sem qualquer limitação.

2) Medos e projectos

Da incapacidade de aceitar as mudanças (D. Miguel) ou da percepção de que os seus interesses estão em jogo (Beresford e Principal Sousa) nascem visões medonhas do futuro e projectos maquiavélicos de acção para manter o poder a todo o custo.

D. Miguel tem medo de “um mundo em que se não distinga, a olho nu, um prelado dum nobre, ou um nobre dum popular”, em “que o taberneiro da esquina possa discutir a opinião d’el-rei”, em que a sua opinião valha “tanto como a de qualquer arruaceiro”, isto é, teme perder a sua posição se o povo puder “escolher os seus chefes”. Por isso, tendo em conta o seu conhecimento da psicologia popular, planeia minuciosamente uma acção contra-revolucionária que envolverá, também, o clero e o exército e, mais tarde, planifica, igualmente, o julgamento de Gomes Freire, de modo a tornar inevitável a sua condenação.

3) Esperança

O final da peça demonstra que o passado e o presente determinam os acontecimentos seguintes, já que, devido à morte de Comes Freire, o futuro, que na sequência do presente se antevia como pouco esperançoso, irá tornar-se, na perspectiva de Matilde, um tempo de esperança e de luta eficaz pela liberdade.

O passado irreal

Uma das facetas mais complexas do tempo é o passado irreal, isto é, o tempo imaginado do que poderia ter sido e não foi. Em Felizmente Há Luar! revela-se assim o universo idealizado, de tranquilidade familiar, sonhado por Matilde, que não passa de uma ilusão desesperada e cega, própria de quem tem a consciência de que a realidade está completamente desfasada do desejo.

Tempo psicológico

Para Matilde, o passado, que começou por ser tempo de anulação, tornou-se tempo de felicidade, em Paris, apesar das dificuldades financeiras. O presente é, assim, um tempo marcado pela saudade do passado. O futuro, que inicialmente se apresenta negro, devido à prisão e provável morte do seu homem, acaba por transformar-se em tempo de esperança, quando ela assume os valores sociais que são atribuídos a Gomes Freire.

Também para o Antigo Soldado, que tem em comum com Matilde a convivência com Gomes Freire, o passado é tempo de saudade; no entanto, os restantes populares, marcados pelo determinismo, vivem exclusivamente o momento presente, ou melhor, sem passado nem futuro de relevo, limitam-se a sobreviver. Para eles, o passado é apenas a memória de momentos em que a esmola foi maior. Até Manuel, o elemento que mais se destaca, se deixa dominar pela fatalidade perante a prisão de Gomes Freire.

Vicente, pelo contrário, é marcado pelo passado de miséria igual ao dos outros, mas que ele consciencializa. É este facto que vai ditar o seu presente de delator, tendo em vista não só a fuga ao determinismo do futuro, mas também procurando apagar o próprio passado e mesmo o presente.

Envelhecimento

O tempo é um factor de desgaste físico e evolução psicológica. Se para Gomes Freire o tempo trouxe um processo de amadurecimento já que “a idade lhe aumentou a fome e a sede de justiça”, para o Principal Sousa o envelhecimento será um processo gradativo de remorsos — é a praga, de provável realização, com que Matilde o amaldiçoa. O tempo desenvolveu capacidades em Vicente, particularmente a de compreender os mecanismos do poder. Mas, desenvolveu, também, o espírito crítico com que observa o envelhecimento dos outros — é por ele que se sabe que os velhos soldados, já sem préstimo para o exército, são obrigados a pedir esmola pelas igrejas. Aflora-se, assim, a problemática socioeconómica da velhice.

Espaço

· Espaço físico: a acção desenrola-se em diversos locais, exteriores e interiores, mas não há nas indicações cénicas referência a cenários diferentes

· Espaço social: meio social em que estão inseridas as personagens, havendo vários espaços sociais, distinguindo-se uns dos outros pelo vestuário e pela linguagem das várias personagens

Estrutura

A acção da peça está dividida em dois actos (estrutura externa), o primeiro com onze sequências e o segundo com treze (estrutura interna). No acto I trama-se a morte de Gomes Freire; no acto II põe-se em prática o plano do acto I.

Simbologia

§ Trinta moedas

o Gesto de traição por não conseguirem ajudar o General

§ Saia verde

o Em vida – esperança, felicidade, liberdade da sua relação

o Na morte – alegoria ao reencontro e tranquilidade (Matilde acredita na vida depois da morte)

§ Fogueira

o Presente – tristeza, escuridão

o Futuro – esperança, liberdade

§ Luar

o Noite – morte, mal, infelicidade

o Luz – vida, saúde, felicidade

o Lua – dependência (da luz do sol), periocidade e rejuvenescimento (ciclo lunar) e renovação (crescimento)

§ Felizmente Há Luar!

o Para os opressores – efeito dissuasor

§ O luar servirá para fazer com que as pessoas saiam à rua

§ Fogueira – purificadora da sociedade

§ Serve de exemplo – eficácia da execução

o Para os oprimidos – coragem e estímulo para a revolta contra a tirania

§ Fogueira – alerta e luz que ilumina o caminho da liberdade

§ Estímulo e encorajamento para que o povo se possa revoltar.

§ Moeda de 5 reis: símbolo de desrespeito que os mais poderosos mantinham para com o próximo, contrariando os mandamentos de Deus

§ Tambores: símbolos da repressão

Didascálias

§ Explicações do autor

§ Posição das personagens

§ Caracterização do tom de voz

§ Indicação das pausas

§ Saída ou entrada das personagens

§ Movimentações cénicas

§ Expressão do estado de espírito

§ Expressão fisionómica e gestual

Linguagem e estilo

· Recursos estilísticos: enorme variedade (tomar espacial atenção à ironia e ao sarcásmo)

· Funções da linguagem: apelativa (frase imperativa); informativa (frase declarativa); emotiva [frase exclamativa, reticências, anacoluto (frases interrompidas)]; metalinguística

· Marcas da linguagem e estilo: provérbios, expressões populares, frases sentenciosas

· natural, viva e maleável, utilizada como marca caracterizadora e individualizadora de algumas das personagens

· uso de frases em latim com conotação irónica, por aparecerem no momento da condenação e da execução

· frases incompletas por hesitação ou interrupção

· marcas características do discurso oral

· Texto principal: As falas das personagens

· Texto secundário: as didascálias/indicações cénicas (têm um papel crucial na peça)

A didascália

A peça é rica em referências concretas (sarcasmo, ironia, escárnio, indiferença, galhofa, adulação, desprezo, irritação – relacionadas com os opressores; tristeza, esperança, medo, desânimo – relacionadas com os oprimidos). As marcações são abundantes: tons de voz, movimentos, posições, cenários, gestos, vestuário, sons (tambores, silêncio, voz que fala antes de entrar no palco, sino que toca a rebate, murmúrio de vozes, toque duma campainha) e efeitos de luz (contraste entre a escuridão e a luz; os dois actos terminam em sombra). De realçar que a peça termina ao som de fanfarra (“Ouve-se ao longe uma fanfarronada que vai num crescendo de intensidade até cair o pano.”) em oposição à luz (“Desaparece o clarão da fogueira.”); no entanto, a escuridão não é total, porque “felizmente há luar”.