92 Já a manhã clara dava nos outeiros
Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta, pela proa.
Já fora de tormenta e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto Melindano:
«Terra é de Calecu, se não me engano;
93 «Esta é, por certo a terra que buscais
Da verdadeira Índia, que aparece;
E, se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece.»
Sofrer aqui não pôde o Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece:
Os geolhos no chão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deus agardeceo.
CANTO VII
Elogio do espírito de cruzada
3 Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que, à custa de vossas várias mortes,
A Lei da vida eterna dilatais:
Assi do Céu deitadas são as sortes
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade,
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!
14 Mas, entanto que cegos e sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana,
Não faltaram Cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana.
De África tem marítimos assentos;
É na Ásia mais que todas soberana;
Na quarta parte nova os campos ara;
E, se mais mundo houvera, lá chegara.CANTO VIII
O poder do ouro
96 Nas naus estar se deixa, vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre;
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor, corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assi como no pobre,
Pode o vil interesse e sede immiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.
Só por ficar senhor do grão tesouro;
Entra, pelo fortíssimo edifício,
Com a filha de Acriso a chuva de ouro;
Pode tanto em Tarpeia avaro vício,
Que, a troco do metal luzente e louro,
Entrega aos inimigos a alta torre,
Do qual quase afogada em pago morre.
98 Este rende munidas fortalezas;
Faz tredores e falsos os amigos;
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos;
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências;
99 Este interpreta mais que sutilmente
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude.
92
3— celsa: alta; gávea: cesto da gávea.
8— Calecu: Calecut ou calecute. Foi avistada a 17 de Maio de 1498.
93
5 — Gama mais: cacofoni.
3
4—Lei da vida eterna: religião de Jesus.
14
2— gente insana: refere-se aos povos europeus e aos povos antigos que se entregaram a guerras fratricidas.
4— casa Lusitana:
Portugal.
7 — Na quarta parte nova: na América (Brasil).
96
7— immiga: inimiga.
97
1 — Polidoro: filho de Priamo, rei de Tróia. Para salvá-lo, quando os Gregos estavam prestes a tomar a cidade, o rei mandou-o com ouro ao rei de Trácia, que o matou e se apoderou do ouro,
4—Ai-riso: Acrísio: rei grego de Argos, que prendeu a filha numa torre. Júpiter ai se introduziu sob a forma de chuva de ouro, transformando-a em mãe de Perseu, que veio a assassinar Acrísio.
5 — Tarpeia: rapariga romana, que abriu as portas da cidade aos Sabinos que a cercavam, na esperança de obter anéis de ouro. Acabará por ser esmagada sob as jóias e os escudos,
98
1 — Este: ouro.
2— tredores: traidores,
99
5/6 — Até os que só a Deus omnipotente/Se dedicam: perífrase de sacerdotes,
8 — não sem cor não sem aparência.
Chegada à Índia
Fora dos perigos e das dificuldades em que a tempestade os colocou, os marinheiros, à vista da Índia, deixam-se invadir pela alegria (estrofe 92).
Com a notícia da chegada a Calecute, Vasco da Gama, sem disfarçar o seu contentamento, ajoelha-se e agradece a Deus a mercê recebida (estrofe 93).
A descrição da euforia da chegada à Índia é muito curta, mas intensa.
Este pequeno texto desenvolve-se em três momentos:
a) os quatro primeiros versos da estrofe 92, em que os marinheiros, numa manhã luminosa (“clara”), lá do mais alto (“celso”) cesto de gávea, avistam a Índia;
b) os oito versos seguintes (segunda parte da estrofe 92 e primeira parte da estrofe 93), em que se enunciam as consequências imediatas do facto referido na primeira parte: o desaparecimento do medo (“o temor vão do peito voa”) e o discurso de confirmação do piloto Melindano;
c) nos quatro últimos versos, o Gama ajoelha e agradece a Deus a enorme graça concedida.
A tão esperada índia é avistada numa “menham clara”, o que nos prenuncia a esperança, perfigurada na manhã, e algo de bom, no vocábulo clara.
Podemos encontrar, em termos estilísticos, uma perífrase em “os outeiros por onde o Ganges murmurando soa” (=Índia), a personificação do Ganges “murmurando” e a adjectivação (“menham clara”, “celsa gávea”, “terra alta”). Na segunda parte podemos encontrar a imagem que se configura na expressão “o temor vão do peito voa”, porquanto se sobrepõem a aliteração em v, a metáfora (“voa”), a sinédoque (“do peito”) e a adjectivação expressiva (“vão”). Na estrofe 93, tanto a alternância rimática em “ais” e “e” como os adjectivos “alegre”, “verdadeira” e “longo” sugerem positividade. Na terceira parte, são de referenciar a antítese “chão/Céu” e a hipérbole “as mãos no céu”.
Elogio do espírito de cruzada
Percorrido tão longo e difícil caminho, é momento para que, na chegada a Calecute, o poeta faça novo louvor aos portugueses. Exalta, então, o seu espírito de Cruzada, a incansável divulgação da Fé, por África, Ásia, América, “E, se mais mundos houvera, lá chegara”, assim inserindo a viagem à Índia na missão transcendente que assumiram, e que é marca da sua identidade nacional. Por oposição, critica duramente as outras nações europeias por não seguirem o seu exemplo, no combate aos infiéis.
Na estrofe 14, Camões faz mesmo a comparação do comportamento dos portugueses com o dos outros países, daí resultando, mais uma vez, o elogio da “pequena casa Lusitana” que levava o Cristianismo aos outros países.
Estamos perante considerações do poeta que se podem integrar na mensagem global d’Os Lusíadas. O ideal renascentista apagou-se completamente no texto que estamos a analisar. Há claramente o elogio da luta proselitista pela difusão da fé cristã, levada pelos portugueses a todas as partes do mundo. Há a repetida incitação a todas as nações da Europa para que, deixando as lutas fratricidas, se lancem contra o inimigo comum - os muçulmanos. O ideal cavaleiresco que informa toda a acção central d’Os Lusíadas está aqui claramente expresso: exaltação dos sacrifícios de um povo para levar a cabo o seu maior objectivo — dilatação da fé e do Império (“se mais mundos houvera, lá chegara”).
Podemos destacar a nível estilístico a apóstrofe presente no primeiro verso da 3ª estrofe (“portugueses”), destinatários da mensagem do poeta, que apesar de serem poucos, são muito fortes,“ poucos quanto fortes” e “a lei da vida eterna” dilatam (perífrase), pois espalham a fé cristã. No último verso também podemos observar uma apóstrofe “ó Cristo”, entidade cristã, protectora dos portugueses, por lhes dever o favor da propagação da fé.
Na estrofe 14 o poeta contrapõe o resto dos povos europeus, através da adjectivação”cegos e sedentos” “gente insana” aos portugueses, elevando estes últimos a um estatuto de soberania “Mais que todas soberana”.
O poder do ouro
A propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos navegadores, são agora enumerados os efeitos perniciosos do ouro — provoca derrotas, faz dos amigos traidores, mancha o que há de mais puro, deturpa o conhecimento e a consciência; os textos e as leis são por ele condicionados; está na origem de difamações, da tirania de Reis, corrompe até os sacerdotes, sob a aparência da virtude.
Retomando a função pedagógica do seu canto, o poeta aponta um dos males da sociedade sua contemporânea, orientada por valores materialistas.
O receio e desconfiança de Vasco da Gama do “cobiçoso, regedor, corrompido e pouco nobre”(adjectivação) é-nos transmitido através do adjectivo “Nas naus estar se deixa vagaroso”, dando-nos a ideia de hesitação.
Estas reflexões do poeta contam-nos muito acerca do seu ponto de vista no que refere a dinheiro, ganância e corrupção.
Compara a atitude gananciosa à de Polidoro, Acriso e Tarpeia, que para se apoderarem do ouro foram capazes de grandes atrocidades.
Nas estrofes 98 e 99, o paralelismo anafórico, referente ao ouro, “Este”, serve para nos enumerar os efeitos danosos deste metal, opondo o bem ao mal.
Podemos ainda assinalar as hipérboles “E mil vezes tiranos torna reis” e “mil vezes ouvireis”, pois são mais um acréscimo para realçar esses efeitos daninhos.
Podemos dividir o texto em quatro partes: na primeira (estrofe 96) o poeta apresenta-nos a situação após a traição do Catual; na segunda (estrofe 97) são referidos exemplos ligados à corrupção provocada pelo ouro; na terceira (estrofes 98 e 99, exceptuando o último verso) há uma enumeração dos efeitos perniciosos do ouro; na quarta (último verso da estrofe 99) o poeta concorda que o ouro é um mal necessário, com as suas virtudes.
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