quinta-feira, 12 de abril de 2007

análise dos poemas: "Chegada à Índia" , Elogio do espírito de cruzada" e "O poder do ouro"

Chegada à Índia

92 Já a manhã clara dava nos outeiros

Por onde o Ganges murmurando soa,

Quando da celsa gávea os marinheiros

Enxergaram terra alta, pela proa.

Já fora de tormenta e dos primeiros

Mares, o temor vão do peito voa.

Disse alegre o piloto Melindano:

«Terra é de Calecu, se não me engano;


93 «Esta é, por certo a terra que buscais

Da verdadeira Índia, que aparece;

E, se do mundo mais não desejais,

Vosso trabalho longo aqui fenece.»

Sofrer aqui não pôde o Gama mais,

De ledo em ver que a terra se conhece:

Os geolhos no chão, as mãos ao Céu,

A mercê grande a Deus agardeceo.


CANTO VII

Elogio do espírito de cruzada


3 Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,

Que o fraco poder vosso não pesais;

Vós, que, à custa de vossas várias mortes,

A Lei da vida eterna dilatais:

Assi do Céu deitadas são as sortes

Que vós, por muito poucos que sejais,

Muito façais na santa Cristandade,

Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!


14 Mas, entanto que cegos e sedentos

Andais de vosso sangue, ó gente insana,

Não faltaram Cristãos atrevimentos

Nesta pequena casa Lusitana.

De África tem marítimos assentos;

É na Ásia mais que todas soberana;

Na quarta parte nova os campos ara;

E, se mais mundo houvera, lá chegara.


CANTO VIII

O poder do ouro


96 Nas naus estar se deixa, vagaroso,

Até ver o que o tempo lhe descobre;

Que não se fia já do cobiçoso

Regedor, corrompido e pouco nobre.

Veja agora o juízo curioso

Quanto no rico, assi como no pobre,

Pode o vil interesse e sede immiga

Do dinheiro, que a tudo nos obriga.


97 A Polidoro mata o Rei Treício,

Só por ficar senhor do grão tesouro;

Entra, pelo fortíssimo edifício,

Com a filha de Acriso a chuva de ouro;

Pode tanto em Tarpeia avaro vício,

Que, a troco do metal luzente e louro,

Entrega aos inimigos a alta torre,

Do qual quase afogada em pago morre.


98 Este rende munidas fortalezas;

Faz tredores e falsos os amigos;

Este a mais nobres faz fazer vilezas,

E entrega Capitães aos inimigos;

Este corrompe virginais purezas,

Sem temer de honra ou fama alguns perigos;

Este deprava às vezes as ciências,

Os juízos cegando e as consciências;


99 Este interpreta mais que sutilmente

Os textos; este faz e desfaz leis;

Este causa os perjúrios entre a gente

E mil vezes tiranos torna os Reis.

Até os que só a Deus omnipotente

Se dedicam, mil vezes ouvireis

Que corrompe este encantador, e ilude;

Mas não sem cor, contudo, de virtude.



92

3— celsa: alta; gávea: cesto da gávea.

8— Calecu: Calecut ou calecute. Foi avistada a 17 de Maio de 1498.

93

5 — Gama mais: cacofoni.

3

4—Lei da vida eterna: religião de Jesus.

14

2— gente insana: refere-se aos povos europeus e aos povos antigos que se entregaram a guerras fratricidas.

4— casa Lusitana:

Portugal.

7 — Na quarta parte nova: na América (Brasil).

96

7— immiga: inimiga.

97

1 — Polidoro: filho de Priamo, rei de Tróia. Para salvá-lo, quando os Gregos estavam prestes a tomar a cidade, o rei mandou-o com ouro ao rei de Trácia, que o matou e se apoderou do ouro,

4—Ai-riso: Acrísio: rei grego de Argos, que prendeu a filha numa torre. Júpiter ai se introduziu sob a forma de chuva de ouro, transformando-a em mãe de Perseu, que veio a assassinar Acrísio.

5 — Tarpeia: rapariga romana, que abriu as portas da cidade aos Sabinos que a cercavam, na esperança de obter anéis de ouro. Acabará por ser esmagada sob as jóias e os escudos,

98

1 — Este: ouro.

2— tredores: traidores,

99

5/6 — Até os que só a Deus omnipotente/Se dedicam: perífrase de sacerdotes,

8 — não sem cor não sem aparência.

Chegada à Índia

Fora dos perigos e das dificuldades em que a tempestade os colocou, os marinheiros, à vista da Índia, deixam-se invadir pela alegria (estrofe 92).

Com a notícia da chegada a Calecute, Vasco da Gama, sem disfarçar o seu contentamento, ajoelha-se e agradece a Deus a mercê recebida (estrofe 93).

A descrição da euforia da chegada à Índia é muito curta, mas intensa.

Este pequeno texto desenvolve-se em três momentos:

a) os quatro primeiros versos da estrofe 92, em que os marinheiros, numa manhã luminosa (“clara”), lá do mais alto (“celso”) cesto de gávea, avistam a Índia;

b) os oito versos seguintes (segunda parte da estrofe 92 e primeira parte da estrofe 93), em que se enunciam as consequências imediatas do facto referido na primeira parte: o desaparecimento do medo (“o temor vão do peito voa”) e o discurso de confirmação do piloto Melindano;

c) nos quatro últimos versos, o Gama ajoelha e agradece a Deus a enorme graça concedida.

A tão esperada índia é avistada numa “menham clara”, o que nos prenuncia a esperança, perfigurada na manhã, e algo de bom, no vocábulo clara.

Podemos encontrar, em termos estilísticos, uma perífrase em “os outeiros por onde o Ganges murmurando soa” (=Índia), a personificação do Ganges “murmurando” e a adjectivação (“menham clara”, “celsa gávea”, “terra alta”). Na segunda parte podemos encontrar a imagem que se configura na expressão “o temor vão do peito voa”, porquanto se sobrepõem a aliteração em v, a metáfora (“voa”), a sinédoque (“do peito”) e a adjectivação expressiva (“vão”). Na estrofe 93, tanto a alternância rimática em “ais” e “e” como os adjectivos “alegre”, “verdadeira” e “longo” sugerem positividade. Na terceira parte, são de referenciar a antítese “chão/Céu” e a hipérbole “as mãos no céu”.

Elogio do espírito de cruzada

Percorrido tão longo e difícil caminho, é momento para que, na chegada a Calecute, o poeta faça novo louvor aos portugueses. Exalta, então, o seu espírito de Cruzada, a incansável divulgação da Fé, por África, Ásia, América, “E, se mais mundos houvera, lá chegara”, assim inserindo a viagem à Índia na missão transcendente que assumiram, e que é marca da sua identidade nacional. Por oposição, critica duramente as outras nações europeias por não seguirem o seu exemplo, no combate aos infiéis.

Na estrofe 14, Camões faz mesmo a comparação do comportamento dos portugueses com o dos outros países, daí resultando, mais uma vez, o elogio da “pequena casa Lusitana” que levava o Cristianismo aos outros países.

Estamos perante considerações do poeta que se podem integrar na mensagem global d’Os Lusíadas. O ideal renascentista apagou-se completamente no texto que estamos a analisar. Há claramente o elogio da luta proselitista pela difusão da fé cristã, levada pelos portugueses a todas as partes do mundo. Há a repetida incitação a todas as nações da Europa para que, deixando as lutas fratricidas, se lancem contra o inimigo comum - os muçulmanos. O ideal cavaleiresco que informa toda a acção central d’Os Lusíadas está aqui claramente expresso: exaltação dos sacrifícios de um povo para levar a cabo o seu maior objectivo — dilatação da fé e do Império (“se mais mundos houvera, lá chegara”).

Podemos destacar a nível estilístico a apóstrofe presente no primeiro verso da 3ª estrofe (“portugueses”), destinatários da mensagem do poeta, que apesar de serem poucos, são muito fortes,“ poucos quanto fortes” e “a lei da vida eterna” dilatam (perífrase), pois espalham a fé cristã. No último verso também podemos observar uma apóstrofe “ó Cristo”, entidade cristã, protectora dos portugueses, por lhes dever o favor da propagação da fé.

Na estrofe 14 o poeta contrapõe o resto dos povos europeus, através da adjectivação”cegos e sedentos” “gente insana” aos portugueses, elevando estes últimos a um estatuto de soberania “Mais que todas soberana”.

O poder do ouro

A propósito da narração do suborno do Catual e das suas exigências aos navegadores, são agora enumerados os efeitos perniciosos do ouro — provoca derrotas, faz dos amigos traidores, mancha o que há de mais puro, deturpa o conhecimento e a consciência; os textos e as leis são por ele condicionados; está na origem de difamações, da tirania de Reis, corrompe até os sacerdotes, sob a aparência da virtude.

Retomando a função pedagógica do seu canto, o poeta aponta um dos males da sociedade sua contemporânea, orientada por valores materialistas.

O receio e desconfiança de Vasco da Gama do “cobiçoso, regedor, corrompido e pouco nobre”(adjectivação) é-nos transmitido através do adjectivo “Nas naus estar se deixa vagaroso”, dando-nos a ideia de hesitação.

Estas reflexões do poeta contam-nos muito acerca do seu ponto de vista no que refere a dinheiro, ganância e corrupção.

Compara a atitude gananciosa à de Polidoro, Acriso e Tarpeia, que para se apoderarem do ouro foram capazes de grandes atrocidades.

Nas estrofes 98 e 99, o paralelismo anafórico, referente ao ouro, “Este”, serve para nos enumerar os efeitos danosos deste metal, opondo o bem ao mal.

Podemos ainda assinalar as hipérboles “E mil vezes tiranos torna reis” e “mil vezes ouvireis”, pois são mais um acréscimo para realçar esses efeitos daninhos.

Podemos dividir o texto em quatro partes: na primeira (estrofe 96) o poeta apresenta-nos a situação após a traição do Catual; na segunda (estrofe 97) são referidos exemplos ligados à corrupção provocada pelo ouro; na terceira (estrofes 98 e 99, exceptuando o último verso) há uma enumeração dos efeitos perniciosos do ouro; na quarta (último verso da estrofe 99) o poeta concorda que o ouro é um mal necessário, com as suas virtudes.

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