quinta-feira, 12 de abril de 2007

análise do poema "formosissíma Maria"

102 Entrava a fermosíssima Maria

Polos paternais paços sublimados,

Lindo o gesto, mas fora de alegria,

E seus olhos em lágrimas banhados.

Os cabelos angélicos trazia

Pelos ebúrneos ombros espalhados.

Diante do pai ledo, que a agasalha,

Estas palavras tais, chorando, espalha:


103 «Quantos povos a terra produziu

De África toda, gente fera e estranha,

O grão Rei de Marrocos conduziu

Pera vir possuir a nobre Espanha.

Poder tamanho junto não se viu,

Despois que o salso mar a terra banha;

Trazem ferocidade e furor tanto,

Que a vivos medo, e a mortos faz espanto.


104 «Aquele que me deste por marido,

Por defender sua terra amedrontada,

Co pequeno poder, oferecido

Ao duro golpe está da Maura espada,

E, se não for contigo socorrido,

Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;

Viúva e triste e posta em vida escura,

Sem marido, sem Reino e sem ventura.


105 «Portanto, ó Rei, de quem com puro medo

O corrente Muluca se congela,

Rompe toda a tardança, acude cedo

À miseranda gente de Castela.

Se esse gesto, que mostras claro e ledo,

De pai o verdadeiro amor assela,

Acude e corre, pai, que, se não corres,

Pode ser que não aches quem socorres.»


106 Não de outra sorte a tímida Maria

Falando está, que a triste Vénus, quando

A Júpiter, seu pai, favor pedia

Pera Eneias, seu filho, navegando;

Que a tanta piedade o comovia,

Que, caído das mãos o raio infando,

Tudo o clemente Padre lhe concede,

Pesando-lhe do pouco que lhe pede.


103

3—Rei de Marrocos: o emir Abul Haçan.

104

1 —Aquele: Afonso XI, Rei de Castela.

105

2 — Muluca: rio do Norte de África, que separava a Mauritânia da

Numídia.

6 — assela: confirma.

106

6 — infindo: que não se deve ou não pode dizer.

7— Padre: Júpiter.

102

6— ebúrneos: muito brancos e lisos.



A Fermosíssima Maria, filha de D. Afonso IV e rainha de Castela, foi quem suplicou a seu pai que ajudasse D. Afonso XI na luta contra os Mouros. Atendendo às suplicas de Maria, Afonso IV avança com o seu exército de modo a ajudar o seu genro.

Este episódio divide-se em três partes. A primeira parte (introdução), em que Maria entra “polos paternais paços sublimados“, e o poeta faz uma descrição física e psicológica utilizando recursos estilísticos como o pretérito imperfeito do indicativo para sugerir continuidade, a adjectivação, começado pelo superlativo absoluto sintético “fermosíssima”. A segunda parte constitui o discurso de Maria, em que ela apresenta argumentos, de ordem política e de ordem pessoal, para convencer o pai. Engrandece o poder do “grão rei de Marrocos” que “a vivos mete medo e a mortos faz espanto”, responsabiliza o pai pela sua situação futura: “Aquilo que me destes por marido / (…) ser privada”. Faz-lhe ver o pequeno poder de Castela: “Co pequeno poder, oferecido / Ao duro golpe da Maura espada” e chama a atenção para a sua situação de esposa, rainha e mulher. Põe em evidência a sua bravura: “Portanto, ó Rei, de quem com puro medo / O corrente do Muluca se congela”, apelando ao amor do pai: “Se esse gesto (…) / verdadeiro amor assela”. A gravidade da iminente invasão de Espanha pelos mouros é reforçada pela hipérbole «Trazem ferocidade e furor tanto, / Que a vivos medo, e a mortos faz espanto.» Por fim, a terceira parte, representa uma conclusão em que o poeta compara a súplica de Maria junto do pai ao pedido de Vénus a Júpiter, para que este socorra Eneias. Há aspectos em que as duas figuras se aproximam: ambas suplicam ajuda ao pai, o estado de espírito em que se lhe dirigem são comoventes, ambas conseguem os seus objectivos. Há também aspectos em que se afastam. Maria afirma-se como esposa, filha e mãe, portanto, como mulher e figura histórica; Vénus, por outro lado, serve-se de todo o seu poder de Deusa do Amor e da sedução para influenciar o pai dos deuses.

Maria tem motivos de várias naturezas para pedir ajuda: pessoal: Maria pede ajuda para o marido e para conservar o seu Reino; apela ao amor de pai; a humanitária: Maria pede que o pai socorra a «miseranda gente de Castela» e a religiosa: Maria procura suscitar no pai o dever de combater o Infiel.

Repare, na est. 102, no emprego do imperfeito durativo e no modo como ele contribui para o visualismo da cena. A passagem desse imobilismo à acção, ou melhor, do silêncio à palavra, é dada pela mudança de tempo dos verbos, que surgem no presente do indicativo: «que a agasalha», «palavras tais [...] espalha» (vv. 7-8). Veja como, na estância 103, a mudança de tempo verbal (pretérito perfeito/presente) serve os propósitos de Maria: o passado recente (dominado pela reunião de um grande exército inimigo — w. 1-5) ameaça o seu presente («Trazem ferocidade e furor tanto»), deixando-a, como será dito na est. 104, caso o pai não ajude o marido (vv. 1-5), sem um futuro feliz: «Ver-me-ás dele e do Reino ser privada». Procure ver, na estância 105, as implicações do uso do imperativo na tensão dramática criada. Atente, finalmente, no emprego do gerúndio, associado ao imperfeito do indicativo, que domina a última estância. Esses tempos verbais estão relacionados com a ideia de continuidade da acção e com a insistência de Maria e de Vénus no pedido formulado. A apresentação hiperbólica do exército mouro, as consequências da invasão de Espanha para o marido, para ela própria e para as gentes de Castela e o apelo final ao amor de pai ajudam a criar uma tensão dramática que vão comovendo D. Afonso IV, que decide atender ao pedido da filha, conforme se depreende da última estrofe, por analogia com o caso de Júpiter e Vénus.

Discurso de Maria

— a est. 103 corresponde à introdução (a apresentação da situação);

—a est. 104 pode ser considerada como sendo o desenvolvimento (enumeração das consequências da invasão dos mouros, se o pai não ajudar o marido);

— a est. 105 corresponde à conclusão (a imperiosa necessidade da ajuda urgente do pai).