102 Entrava a fermosíssima Maria
Polos paternais paços sublimados,
Lindo o gesto, mas fora de alegria,
E seus olhos em lágrimas banhados.
Os cabelos angélicos trazia
Pelos ebúrneos ombros espalhados.
Diante do pai ledo, que a agasalha,
Estas palavras tais, chorando, espalha:
103 «Quantos povos a terra produziu
De África toda, gente fera e estranha,
O grão Rei de Marrocos conduziu
Pera vir possuir a nobre Espanha.
Poder tamanho junto não se viu,
Despois que o salso mar a terra banha;
Trazem ferocidade e furor tanto,
Que a vivos medo, e a mortos faz espanto.
104 «Aquele que me deste por marido,
Por defender sua terra amedrontada,
Co pequeno poder, oferecido
Ao duro golpe está da Maura espada,
E, se não for contigo socorrido,
Ver-me-ás dele e do Reino ser privada;
Viúva e triste e posta em vida escura,
105 «Portanto, ó Rei, de quem com puro medo
O corrente Muluca se congela,
Rompe toda a tardança, acude cedo
À miseranda gente de Castela.
Se esse gesto, que mostras claro e ledo,
De pai o verdadeiro amor assela,
Acude e corre, pai, que, se não corres,
Pode ser que não aches quem socorres.»
106 Não de outra sorte a tímida Maria
Falando está, que a triste Vénus, quando
A Júpiter, seu pai, favor pedia
Pera Eneias, seu filho, navegando;
Que a tanta piedade o comovia,
Que, caído das mãos o raio infando,
Tudo o clemente Padre lhe concede,
Pesando-lhe do pouco que lhe pede.
103
3—Rei de Marrocos: o emir Abul Haçan.
104
1 —Aquele: Afonso XI, Rei de Castela.
105
2 — Muluca: rio do Norte de África, que separava a Mauritânia da
Numídia.
6 — assela: confirma.
106
6 — infindo: que não se deve ou não pode dizer.
7— Padre: Júpiter.
102
6— ebúrneos: muito brancos e lisos.
A Fermosíssima Maria, filha de D. Afonso IV e rainha de Castela, foi quem suplicou a seu pai que ajudasse D. Afonso XI na luta contra os Mouros. Atendendo às suplicas de Maria, Afonso IV avança com o seu exército de modo a ajudar o seu genro.
Este episódio divide-se em três partes. A primeira parte (introdução),
Maria tem motivos de várias naturezas para pedir ajuda: pessoal: Maria pede ajuda para o marido e para conservar o seu Reino; apela ao amor de pai; a humanitária: Maria pede que o pai socorra a «miseranda gente de Castela» e a religiosa: Maria procura suscitar no pai o dever de combater o Infiel.
Repare, na est. 102, no emprego do imperfeito durativo e no modo como ele contribui para o visualismo da cena. A passagem desse imobilismo à acção, ou melhor, do silêncio à palavra, é dada pela mudança de tempo dos verbos, que surgem no presente do indicativo: «que a agasalha», «palavras tais [...] espalha» (vv. 7-8). Veja como, na estância
Discurso de Maria
— a est. 103 corresponde à introdução (a apresentação da situação);
—a est. 104 pode ser considerada como sendo o desenvolvimento (enumeração das consequências da invasão dos mouros, se o pai não ajudar o marido);
— a est. 105 corresponde à conclusão (a imperiosa necessidade da ajuda urgente do pai).