terça-feira, 17 de abril de 2007

Mar português

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena?
Tudo vale a pena,
Se não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.


Trata-se de um poema da segunda parte – Mar Português – da Mensagem- colectânea de poemas de Fernando Pessoa, escrita entre 1913 e 1934, data da sua publicação. Esta obra contém poesia de índole épico-lírica participando assim das características deste dois géneros. Relativamente à sua matriz épica devemos destacar o tom de exaltação heróica que percorre esta obra; a evocação dos perigos e dos desastres bem como a matéria histórica ali apresentada. No atinente à sua dimensão lírica, podemos destacar a forma fragmentária da obra, o tom menor, a interiorização da matéria épica, através da qual sujeito poético se exprime.
Nesta segunda parte da obra que nos propomos analisar abordam-se o esforço heróico na luta contra o Mar e a ânsia do Desconhecido. Aqui merecem especial atenção os navegadores que percorreram o mar em busca da imortalidade, cumprindo um dever individual e pátrio (realização terrestre de uma missão transcendente)
Em termos formais, constatamos que o poema é constituído por duas estrofes, de seis versos (sextilhas). Quanto ao metro os versos são irregulares. Os versos são decassilábicos, octossílabos. Predomina o ritmo binário, ritmo largo, adequado, é meditação lírica, embora sobre um tema épico. A rima é emparelhada, segundo o esquema aabbcc. As palavras que rimam são, na sua maioria, palavras importantes no universo do poema (sal, Portugal, choraram, rezaram, Bojador, dor, céu, realçando a sua expressividade em conjugação com a posição final de verso ocupada.
O tema desta composição poética pode dizer-se que é a apresentação dos perigos e das glórias que o mar comporta ao povo português. Este tema desenvolve-se em duas partes.
A primeira parte é constituída pela primeira estrofe, onde o sujeito poético apresenta uma realidade épica – é a síntese da história de um povo e dos sacrifícios que suportou para poder conquistar o mar; a segunda estrofe é de carácter mais reflexivo, fazendo o sujeito poético um balanço dos referidos sacrifícios. A conclusão é que valeu a pena, pois em resultado desse sofrimento o povo português conquistou o absoluto. As aspirações infinitas dos homens conduzem-nos até este ponto. A recompensa das grandes dores são as grandes glórias.
A primeira parte inicia-se com uma apóstrofe ao mar encerrando com outra desta feita não adjectivando o mar como salgado (veja-se a expressividade deste adjectivo, enfatizando o sabor amargo do sal, mas mais amargo ainda o sofrimento que causa as lágrimas já de si também salgadas – perspectiva simbólica deste elemento), mas conferindo à estrofe e de certo modo ao poema uma espécie de circularidade. A aliteração ena labial poderá sugerir a relação necessária e fatal entre o mar e o sofrimento. Tudo começa e termina no mar. A metáfora associada à hipérbole nestes dois versos iniciais (Quanto do teu sal são lágrimas de Portugal), acentuam o sofrimento causado pelo mar no povo português. Note-se ainda a metonímia em Portugal. As frases exclamativas conferem o tom épico a esta primeira estrofe e patenteiam as vítimas que o mar fazia em terra: as mães, as noivas e os filhos são os atingidos pelo sofrimento causado pelo elemento marinho. A repetição do determinante interrogativo, em posição anafórica, nos dois últimos versos acentua o dramatismo das situações narradas. Foi sobretudo nos núcleos familiares que se fizeram sentir os malefícios do mar. Ressalte-se o valor expressivo da metáfora inicial “ Por te cruzarmos”, apontando para a cruz símbolo de sofrimento. Os verbos choraram, rezaram, e ficaram por casar ainda por cima reforçado pela expressão “em vão” denotam a dor, o sofrimento e o choro aflito provocados pela destruição do amor maternal, filial e de namorados. Tudo isto porque almejamos a posse do mar “ para que fosses nosso, ó mar!”
A segunda parte inicia-se com dois versos de teor axiomático, possibilitando um balanço que para o sujeito poético é positivo, apesar de todos os sacrifícios. Basta para tal que o objectivo que esteja na base da empresa seja nobre. Note-se a reiteração de valeu...vale e mais adiante passar...passar... reforçando a relação necessária entre o sofrimento e o heroísmo. A própria interrogação retórica funciona como uma chamada de atenção para as contrapartidas que o povo português alcançara do destino. A resposta à questão que levantou o sujeito poético obtém a resposta nele mesmo, através de três frases, todas elas carregadas de grande simbolismo. A primeira resposta “ Tudo vale a pena se a alma não é pequena” sugere a grandeza da alma humana, sempre pronta a desejar o impossível, o que pode proporcionar a glória, a heroicidade. Tudo vale a pena para alcançar o ideal sonhado. Na segunda frase “ Quem quer passar além do Bojador / tem que passar além da dor”, deve entender-se Bojador na sua dimensão simbólica, de ultrapassar o medo, ultrapassar o desconhecido, conseguir a glória e a heroicidade desejada. Não obstante é necessário ultrapassar também em primeiro lugar a dor. Finalmente a terceira frase “ Deus ao mar o perigo e o abismo deu / mas nele é que espelhou o céu”. O perigo e o abismo do mar são a causa de sofrimentos, mas no sentido metafórico e simbólico que está para lá do denotativo de o céu se reflectir no mar, está a ideia de que o céu é símbolo do sonho realizado, da glória. Daqui poderemos deduzir que quem vencer os perigos do mar e o sofrimento alcançará a glória suprema. Nas frases enunciadas constatamos sempre a existência de dois elementos antitéticos “ pena”, “dor”, “perigo” e “tudo vale a pena”, “passar além da dor”, “passar além do Bojador” e “céu”. É interessante verificarmos que não existem conjunções a ligar estas frases e que a primeira tem sentido universal, sendo que a segunda particulariza o sentido ao caso português, e por último, parecendo a frase de sentido universal, ela liga-se à exclamação que introduz o poema, é para o mar português que se aponta, para a tragédia e glória de Portugal. Daqui resulta sobretudo a dimensão épica do poema. Este texto aproxima-se do episódio de Camões “ O Velho do Restelo”, mas desaparece a crítica aos Descobrimentos acentuando-se sobretudo o tom laudatório em Pessoa.
Ao longo do poema predominam os tempos do perfeito para evocar acontecimentos passados trágicos e o presente que situa o sujeito poético num tempo presente, considerando os valores morais fundamentais à construção de heróis, bravura, tenacidade e desejo de vencer.

2 comentários:

António Seabra disse...

Ao escrever o poema esqueceu-se da palavra mais importante: "Alma".

Unknown disse...

Gloria, honra e mora matando, escravizando e invadindo terras? Bem cara de pau, apesar de ser um poema bem feito e bonito.