sexta-feira, 4 de maio de 2007

"Óde Triunfal" de Álvaro de Campos

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!



À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com o que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical –
Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força –
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro.
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro
E há Platão e Virgílio dentro das máquinas e das luzes eléctricas
Só porque houve outrora e foram humanos Virgílio e Platão,
E pedaços do Alexandre Magno do século talvez cinquenta,
Átomos que hão-de ir ter febre para o cérebro do Ésquilo do século cem,
Andam por estas correias de transmissão e por estes êmbolos e por estes volantes,
Rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando,
Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma.

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes e óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!

Fraternidade com todas as dinâmicas!
Promíscua fúria de ser parte-agente
Do rodar férreo e cosmopolita
Dos comboios estrénuos.
Da faina transportadora-de-cargas dos navios.
Do giro lúbrico e lento dos guindastes,
Do tumulto disciplinado das fábricas,
E do quase-silêncio ciciante e monótono das correias de transmissão!


Ó fazendas nas montras! ó manequins! ó últimos figurinos!
Ó artigos inúteis que toda a gente quer comprar!
Olá grandes armazéns com várias secções!
Olá anúncios eléctricos que vêm e estão e desaparecem!
Olá tudo com que hoje se constrói, com que hoje se é diferente de ontem!
Eh, cimento armado, betão de cimento, novos processos!
Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos!
Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!

Amo-vos a todos, a tudo, como uma fera.
Amo-vos carnivoramente,
Pervertidamente e enroscando a minha vista
Em vós, ó coisas grandes, banais, úteis, inúteis,
Ó coisas todas modernas,
Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima
Do sistema imediato do Universo!
Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Ó fábricas, ó laboratórios, ó music-halls, ó Luna-Parcks.
Ó couraçados, ó pontes, ó docas flutuantes –
Na minha mente turbulenta e incandescida
Possuo-vos como a uma mulher bela,
Completamente vos possuo como a uma mulher bela que não se ama,
Que se encontra casualmente e se acha interessantíssima.

Eh-lá-hô fachadas das grandes lojas!
Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios!
Eh-lá-hô recomposições ministeriais
Parlamentos, políticas, relatores de orçamentos,
Orçamentos falsificados!
(Um orçamento é tão natural como uma árvore
E um parlamento tão belo como uma borboleta).

(...)
Eu podia morrer triturado por um motor
Com o sentimento da deliciosa entrega duma mulher possuída.
Atirem-me para dentro das fornalhas!
Metam-me debaixo dos comboios!
Espanquem-me a bordo dos navios!
Masoquismo através de maquinismos!
Sadismo de não sei quê moderno e eu e barulho!

Up-lá hô jockey que ganhaste o Derby,
Morder entre os dentes o teu cap de duas cores.
(...)

Eh-lá, eh-lá, eh-lá, catedrais!
Deixai-me partir a cabeça de encontro ás vossas esquinas.
(…)

Ó automóveis apinhados de pândegos e de...,
Ó multidões quotidianas nem alegres nem tristes das ruas,
Rio multicolor anónimo e onde eu me posso banhar como queria
Ah, que vidas complexas, que coisas lá pelas casas de tudo isto!
Ah, saber-lhes as vidas a todos, as dificuldades de dinheiro,
As dissensões domésticas, os deboches que não se suspeitam,
Os pensamentos que cada um tem a sós consigo no seu quarto
E os gestos que faz quando ninguém pode ver!
Não saber tudo isto é ignorar tudo, ó raiva,
Que como uma febre e um cio e uma fome
Me põe a magro o rosto e me agita às vezes as mãos
Em crispações absurdas em pleno meio das turbas
Nas ruas cheias de encontrões!

(…)

A gentalha que anda pelos andaimes e que vai para casa
Por vielas quase irreais de estreiteza e podridão.
Maravilhosa gente humana que vive como cães,
Que está abaixo de todos os sistemas morais,
Para quem nenhuma religião foi feita
Nenhuma política destinada para eles!
Como eu vos amo a todos, porque sois assim.
Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus.
Inatingíveis por todos os progressos,
Fauna maravilhosa do fundo do mar da vida!

(Na nora do quintal da minha casa
O burro anda à roda, anda à roda
E o mistério do mundo é do tamanho disto.
Limpa o suor com o braço, trabalhador descontente.
A luz do sol abafa o silêncio das esferas
E havemos todos de morrer,
Ó pinheirais sombrios ao crepúsculo,
Pinheirais onde a minha infância era outra coisa
Do que eu sou hoje...)

Mas, ah outra vez a raiva mecânica constante!
Outra vez a obsessão movimentada dos ónibus.
E outra vez a fúria de estar indo ao mesmo tempo dentro de todos os comboios
De todas as partes do mundo,
De estar dizendo adeus de bordo de todos os navios,
Que a estas horas estão levantando ferro ou afastando-se das docas.
Ó ferro, ó aço, ó alumínio, ó chapas de ferro ondulado!
Ó cais, ó portos, ó comboios, ó guindastes, ó rebocadores!

Eh-lá grandes desastres de comboios!
Eh-lá desabamentos de galerias de minas!
Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transatlânticos!
Eh-lá-hô revoluções aqui, ali, acolá,
Alterações de constituições, guerras, tratados, invasões,
Ruído, injustiças, violências, e talvez para breve o fim,
A grande invasão dos bárbaros amarelos pela Europa,
E outro Sol no novo Horizonte!

Que importa tudo isto, mas que importa tudo isto
Ao fúlgido e rubro ruído contemporâneo,
Ao ruído cruel e delicioso da civilização de hoje?
Tudo isso apaga tudo, salvo o Momento,
O Momento de tronco nu e quente como um fogueiro,
O Momento estridentemente ruidoso e mecânico,
O Momento dinâmico passagem de todas as bacantes
Do ferro e do bronze e da bebedeira dos metais.

Eia comboios, eia pontes, eia hotéis à hora do jantar,
Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos,
Instrumentos de precisão, aparelhos de triturar, de cavar,
Engenhos, brocas, máquinas rotativas!

Eia! eia! eia!
Eia electricidade, nervos doentes da Matéria!
Eia telegrafia-sem-fios, simpatia metálica do Inconsciente!
Eia túneis, eia canais, Panamá, Kiel, Suez!
Eia todo o passado dentro do presente!
Eia todo o futuro já dentro de nós! eia!
Eia! eia! eia!
Frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita!
Eia! eia! eia! eia-hô-ô-ô!
Nem sei que existo para dentro. Giro, rodeio, engenho-me.
Engatam-me em todos os comboios.
Içam-me em todos os cais.
Giro dentro das hélices de todos os navios.
Eia! eia-hô! eia!
Eia! sou o calor mecânico e a electricidade!
Eia! e os rails e as casas de máquinas e a Europa!
Eia e hurrah por mim-tudo e tudo, máquinas a trabalhar, eia!

Galgar com tudo por cima de tudo! Hup-lá!

Hup-lá, hup-lá, hup-lá-hô, hup-lá!
Hé-há! He-hô! H-o-o-o-o-o!
Z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z-z!

Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!


Londres, 1914 – Junho

Álvaro de Campos.

Dum Livro chamado Arco de Triunfo, a publicar.

Junho de 1914 (publicado no Orpheu, nº 1, 1915).



Trata-se de um poema do heterónimo Álvaro de Campos, poeta que surge como reflexo do ardor futurista de Fernando Pessoa. A observação do mundo que o rodeia naquele início do século XX, retratando a rebeldia e a insubmissão dos movimentos de vanguarda. Olha também para o futuro e canta-o na sua poesia.
Na obra de Álvaro de Campos reconhece-se uma evolução ao longo de três fases:
A decadentista, que exprime o tédio, o cansaço e a necessidade de novas sensações; a futurista e sensacionista, caracterizada pela exaltação da energia, de “todas as dinâmicas”, da velocidade e da força até situações de paroxismo; e finalmente a fase intimista em que o poeta diante da incapacidade de realizar o que projectou entra novamente na abulia, no abatimento, que provoca um supressíssimo cansaço.
Este poema integra-se claramente na segunda fase de evolução do poeta a futurista sensacionista. Esta foi influenciada pelo futurismo de Marinetti e pelo sensacionismo de Whitman. Se bem que ambos estejam presentes na Ode Triunfal, o facto é que o sensacionismo acaba por absorver o futurismo.
Neste poema, merece desde já a nossa atenção o título. Ode remete-nos para um canto de exaltação. Neste caso o “eu” exalta a máquina, a vida mecânica e industrial, a civilização industrial, o quotidiano das gentes, ou melhor, as sensações que defluem do amor à vida moderna em toda a sua variedade. Com o epíteto triunfal pretende-se vincar, mas também hiperbolizar o sentido de ode. Dá-nos deste modo logo a sensação de qualquer coisa de grandioso, não apenas no conteúdo, mas também na forma.
Foi exactamente com os poemas desta segunda fase de Álvaro de Campos que Fernando Pessoa mais se afastou do lirismo tradicional. Daqui resulta a dificuldade de analisar estes poemas.
A rotura com a lírica tradicional verifica-se mormente na irregularidade das estrofes. Existem estrofes de quatro versos, de dez, de onze, de dezasseis, etc. Semelhante irregularidade se detecta na métrica: há versos de cinco a vinte e uma sílabas e outros em que a contagem se torna difícil, sobretudo quando entram sons que não são signos linguísticos. Da conjugação destes elementos resulta um ritmo nervoso e irregular, que traduz a dinâmica vivencial do sujeito poético, a sua energia interior.
Ao nível da sintaxe é também possível constatar o afastamento da lírica tradicional. A quase ausência de subordinação (algumas relativas, poucas comparativas e uma consecutiva) corrobora esta afirmação. As orações coordenadas marcam parataticamente o ritmo rápido do poema. Cada oração coordenada exprime um fenómeno da vida moderna que cruzou o pensamento do sujeito de enunciação. Ao longo do poema surgem ainda exclamações que sublinham a emoção do sujeito diante dos fenómenos da vida moderna. Repare-se nos últimos versos: vinte e cinco são exclamações, sendo apenas três afirmações onde se verifica a presença do verbo. Os infinitivos marcam também presença nas expressões exclamativas. Devemos ainda considerar nesta linha de pensamento as repetições e as enumerações gradativas, permitindo a justaposição de palavras, que brotam torrencialmente através dessas enumerações falsamente caóticas, que conduzem ao excesso de expressão definido por José Augusto Seabra. Tudo o que até agora mencionei, aliado a uma catadupa de figuras (metáforas, comparações, imagens, apóstrofes, anáforas, etc.) produzem um estilo ferozmente dinâmico que jamais se produziu em Portugal.
Aparecem também alguns desvios sintácticos “ fera para a beleza de tudo isto”; “Por todos os meus nervos dissecados fora”; “frutos de ferro e útil da árvore-fábrica cosmopolita”.
Há palavras que não transportam em si interesse lírico. Não obstante Álvaro de Campos como o escritor parnasiano recorreu a uma série de vocábulos prosaicos até de índole técnica “fábrica”, “maquinismos”, “dissecados”, “correias de transmissão”, “êmbolos”, “cargas de navios”, “guindastes”, “chumaceiras”, etc., adaptando a mudança da vida moderna à mudança no conteúdo ideológico das palavras.
Sendo esta a primeira obra de Campos, tem o dom de despertar em nós admiração e até espanto, contribuindo para tal, como já referi, o próprio vocabulário.
O poema inicia-se com a iluminação das lâmpadas eléctricas. Somos colocados no meio de um ambiente fabril, em que o sujeito poético escreve num estado febril. Sentimos de repente um rugir “rugindo os dentes” que nos afasta do tempo dos outros heterónimos. Estamos num tempo de modernidade.
Logo no início da segunda estrofe somos lançados no meio dos ruídos de todos os elementos que constituem a dita fábrica. O homem enfraquecido pela febre, exposto aos barulhos produzidos pelas máquinas, é arrebatado pelos movimentos dos mecanismos (rodas, engrenagens). O seu ritmo coaduna-se ao ritmo das máquinas que estão à sua volta. São as papilas, os lábios, os nervos e a sua cabeça que giram como os mecanismos da civilização moderna. Todo este mundo chega até si através dos sentidos que estão alerta procurando abarcar tudo.
A maioria das suas frases são nominais, jogando apenas com verbos conjugados que se referem ao sujeito poético “tenho febre”, “escrevo”, “sinto”, “canto”. Os verbos no infinitivo são também recorrentes. A forma como o “ eu” observa e tenta abarcar o mundo não parece dar-lhe tempo para organizar o seu discurso de outro modo. O uso recorrente de exclamações, interjeições e onomatopeias: “r-r-r-r-r- eterno!; “Eh-lá-hô elevadores dos grandes edifícios”; “Hup-lá, hup-lá, hup lá hô...; as apóstrofes “Ó fazendas nas montras”, Ó manequins!, “Ó últimos figurinos! Ó cais, ó portos, ó comboios!....; as enumerações “Couraças, canhões, metralhadoras, submarinos, aeroplanos!; “guerras, tratados, invasões, Ruído, injustiças, violências” e nas apóstrofes; as anáforas “Olá grandes armazéns, ... Olá anúncios eléctricos... Olá tudo!; “Eh-lá-hô fachadas, Eh-lá-hô elevadores, Eh-lá-hô recomposições ministeriais!” são os recursos estilísticos que lhe permitem cantar com excesso de expressão as suas sensações.
Acrescente-se ainda o recurso a comparações inesperadas “olhando os motores como a uma natureza tropical”; “Possuo-vos como a uma mulher bela”; “um orçamento é tão natural como uma árvore e um parlamento tão belo como uma borboleta.”
O excesso de expressão corporiza-se ainda nas aliterações onomatopaicas “ de ferro e fogo e força” “ rugindo, rangendo, ciciando, estrugindo, ferreando” e “quase silêncio ciciante”.
Note-se ainda a frequência de uma série de sequências de três ou mais adjectivos ”Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável”; “Em vós ó grandes, banais, úteis, inúteis”; “Nem imorais de tão baixos que sois, nem bons nem maus”; Eia aparelhos de todas as espécies, férreos, brutos, mínimos”. Veja-se ainda uma série de adjectivos e advérbios que servem a exaltação do belo atroz “Maravilhosa gente humana que vive como cães”; “fauna maravilhosa do fundo do mar da vida”; “Eh-lá naufrágios deliciosos dos grandes transtlânticos!”; “ruído cruel e delicioso da civilização”. Agora os advérbios “Progressos dos armamentos gloriosamente mortíferos”; “Amo-vos carnivoramente / Pervertidamente”
Termina de forma abrupta o furor do eu que exalta o seu amor pela civilização, passando o tom a ser de uma certa fatalidade da morte, a ternura perdida na infância e o mistério do mundo.
Campos aproxima-se de Caeiro no recurso ao verso livre e na importância conferida à sensação. Mas o que no mestre é a “sensação das coisas como são” em Campos, o que salta à vista é a fome de um mundo de sensações novas. Daí que sinta o bem como sente o mal, o mórbido como sente o saudável, o normal como sente o anormal, única forma de “ser toda a gente e toda a parte” e “sentir tudo de todas as maneiras”.
Assim o que é serenidade epicurista em Caeiro é ânsia futurista do novo Homem (segundo Marinetti deveria este ser isento, saudável, amoral, dominador e livre de todas as peias) em Campos “que como uma febre e um cio e uma fome agita” o impele a querer sentir tudo de todas as maneiras.